Miriam Fábia: “Impacto brutal na formação dos jovens”

Paulo Oliveira

Doutora em educação, professora da Universidade Federal de Goiás e coordenadora do Grupo de Estudos e pesquisas em Políticas Educacionais e Juventude (GEPEJ), especializado em estudos sobre militarização de escolas, Miriam Fábia Alves acredita que este processo ainda vai se expandir muito, mesmo que a extrema-direita perca as próximas eleições. Ela se baseia em cenário que inclui o avanço do conservadorismo, os interesses eleitoreiros e o processo de apropriação deste modelo por escolas particulares.

Miriam acrescenta que tem ouvido colegas professores aderirem ao sistema com a justificativa que agora conseguem dar aula, portanto os alunos têm que aprender. Ela critica este posicionamento, baseado na redução de esforço para pensar em diferentes estratégias e metodologias que convençam e mobilizem os estudantes para o aprendizado. A coordenadora do Gepej considera que este tipo de ensino causa um impacto brutal na formação das crianças e adolescentes por não privilegiar uma cultura pautada na ciência, na dúvida, na indagação e no questionamento.

Nesta entrevista a Meus Sertões, Miriam rebate os argumentos a favor dos convênios de gestão compartilhada entre as forças militares e secretarias de educação, cita modelos mais eficientes de formação e de redução da violência nas escolas e define como “grande desgraça” a transformação de um programa de escolas cívico-militares em política pública de estado.

 

Qual a definição de militarização do ensino?

Os diversos processos de entrega das escolas à mão da Polícia Militar, do Corpo de Bombeiros e das forças militares em voga no Brasil inteiro. São acordos feitos de diferentes maneiras: entre secretarias estaduais e municipais de educação e as polícias; secretarias e uma ONG criada por policiais para fazer propostas pedagógicas e implantar a militarização no cotidiano dos colégios. Não é um processo unificado, mas vem ganhando capilaridade.

 

Quais os argumentos utilizados para justificar a militarização das escolas?

Nessa lógica de fazer uma avaliação standartizada, nacional, desconsiderando as diferentes realidades, essas escolas têm conseguido produzir o que os defensores chamam de um resultado positivo. Por quê? Porque acaba que os estudantes dessas escolas têm resultados melhores nas avaliações nacionais. Esse é um argumento: qualidade dessas escolas. Óbvio que esse é um discurso de senso comum, que desconsidera todas as variáveis que compõem o resultado que se chega. Aqui em Goiás, isso é muito usado para dizer que as escolas têm qualidade, são desejadas, são objeto de disputa e que o modelo precisa ser expandido. O discurso da qualidade é utilizado recorrentemente.

 

Mas nossa apuração constatou que essas escolas são excludentes e vão se elitizando com o passar do tempo.

Aí você traz um item que temos mapeado nas pesquisas nacionais. Mesmo quando se diz que essa escola é para uma população vulnerável, que está acometida pelas condições de vida mais difíceis, esse público não permanece nessas escolas.

 

Escola de Campo Formoso mudou para longe dos bairros vulneráveis. Foto: Paulo Oliveira

 

Que outras características a senhora ressalta nesse processo?

O discurso da disciplina colou muito em um país que está na contramão dos direitos humanos, um país que arma a população, uma país que defende a violência policial como controle da população, um país que investe pouco em políticas públicas para todos.  A disciplina é um chamariz, que serve de bandeira para divulgar esses colégios. Por isso, o que chamam de formação cidadã está vinculada à formação militarizada: obediência, marcha, ordem unida, todo o rito militarizado. Esse é um outro elemento.

O discurso de criminalização da juventude também tem ganho adesão. Esses jovens e adolescentes são apresentados como perigosos, indisciplinados, incontroláveis. E, se o mundo civil não dá conta, o mundo militar é chamado para fazer o controle desse público.

 

Até que ponto a questão religiosa se mistura com a militarização?

A gente precisa considerar que o cenário brasileiro é de avanço neoconservador. A gente pode dialogar com Michal Apple [1] e a realidade americana, mas a gente pode dialogar com os traços de como essa realidade americana vai se implementando na realidade brasileira. Um estado cada vez mais marcado pela apropriação religiosa cristã. O movimento que Apple chama de “evangelismo” está muito presente.

A pauta dos costumes discutida na campanha de 2018, que culminou na eleição do atual governo, é recorrentemente chamada para dizer que educação você quer e, ao mesmo tempo, atacar o que está sendo feito. Os temas vinculados aos costumes, ao homeschooling (educação escolar em casa), ao empreendedorismo e à questão religiosa se juntam em um modelo militarizado de educação, que vai ganhando cada vez mais visibilidade como modelo desejado.

Essas coisas estão muito imbricadas e é por isso que assumem características cada vez mais diversas, mas unificadas em um ponto: “a população civil não é capaz de fazer escola, é preciso que nós chamemos forças militares”.

 

E qual a participação do governo federal nesse processo?

Ao criar o Programa das Escolas Cívico-Militares (Pecim), ele ampliou o leque da militarização, deu visibilidade nacional, tornando esse processo em política pública do estado brasileiro. Essa é a grande desgraça. Se fosse apenas um programa do governo federal, a tendência era ser deixado de lado. A gente sabe como funciona a lógica da política quando há mudança de poder. No entanto, a gente vê a ação dos municípios, dos estados militarizando escolas. Então esse processo não é tão simples. Se a Bahia, onde há um governo progressista em tese, faz isso, imagine o que acontece no caso de Goiás.

 

Algumas pessoas dizem que o universo de escolas e alunos ainda é pequeno. Mas até que ponto isso pode alcançar?

São poucas unidades se consideramos o universo escolar. Mas o Paraná militarizou 206 escolas,  entre o final de 2020 e 2021 Isso equivalente a 10% do total da rede estadual.

 

A senhora pode resumir o que aconteceu no Paraná?

O governo, na onda do Pecim, criou uma lei militarizando as escolas. Ele usou a mesma argumentação de sempre: disciplina, qualidade do ensino, controle da violência e da juventude. E utilizou o termo “cívico-militar”. Isso não é de graça. Normalmente não gostam de usar “militarização” como conceito, preferem “gestão compartilhada”. Entre 2020 e 2021, o Paraná militarizou de uma tacada um lote de escolas [2], equivalente a 10% da rede pública. Hoje, o estado tem o maior número de escolas militarizadas no país. A Bahia está em segundo lugar e Goiás, em terceiro. Em um ano, o número de escolas militarizadas dobrou em todo o Brasil. O boom nesse período é impressionante.

 

Propaganda do colégio Batalha do Riachuelo, em Fortaleza, no Ceará. Reprodução

 

Porque também lhe preocupa a proliferação desse tipo de escolas na rede particular?

A quantidade de escolas tem me preocupado desde que comecei a debater este tema aqui em Goiás, em 2013. E era um número bem menor naquele período, além das experiências serem silenciosas.  Tinha uma no Mato Grosso, uma ou outra no Norte do país. Mais recentemente, estamos observando escolas privadas se anunciando como militarizadas. Goiás está fazendo algumas experiências. Você contrata uma empresa para fazer assessoria e ela vende um projeto pedagógico e de treinamento para professores para militarizar o cotidiano dos alunos. É o mercado se apropriando desse modelo com a promessa de educação de qualidade.

 

Do ponto de vista pedagógico, os alunos têm algum ganho ou é apenas doutrinação?

Essas escolas são altamente conteudistas. O impacto do ponto de vista pedagógico ocorre por conta de um sistema de organização muitíssimo competitivo, com premiações e distinção a partir dos resultados. Temos ouvido muitos colegas professores que dizem que o modelo é bom. Eles justificam: ‘Eu consigo dar minha aula e o aluno tem que aprender’. Isso quer dizer que não precisam ter esforço para convencer e  mobilizar o aluno para ele aprender. Não é necessário pensar diferentes estratégias e metodologias.

A minha hipótese é de que a forma como é pensado o ensino dessas escolas é extremamente prejudicial para o desenvolvimento intelectual de autonomia formativa e intelectual da juventude. Porque, ao invés de fazer uma cultura acadêmica pautada na ciência, na dúvida, na indagação, no questionamento, você faz o contrário. Faz uma cultura de uma obediência e de um conteudismo [3] inquestionável. Se a gente disciplina, por outro lado mata a possibilidade de desenvolvimento de uma autonomia intelectual, que não está pautada na obediência. É uma coisa que a gente tem que acompanhar com cuidado.

Para mim, há um impacto muito brutal na formação dos jovens, quando matam o direito deles assumirem suas identidades, de ser jovem e exercitar a juventude. Fiscaliza-se a roupa, o cabelo, o jeito de andar, de vestir, o local que eles frequentam. Hoje devemos ter 480 escolas militarizadas no  Brasil, que impactam significativamente na formação dos adolescentes e jovens.

 

Escola Parque São Cristóvão [4] foi tema de dissertação. Reprodução do Facebook

 

Existem modelos que podem reduzir a violência nas escolas, sem este método autoritário?

As experiências das escolas abertas [5] nas comunidades periféricas desse país são fantásticas. Elas atuam com as comunidades e incentivam a inserção da escola no cotidiano, na vida, investindo em cultura, arte, lazer e outros direitos básicos, que são cotidianamente negados a essas populações. Essas iniciativas mostram que a gente precisa muito mais disso do que militarizar escolas. Os resultados são ótimos.

Os institutos federais, que oferecem educação integral, arte, música, teatro e experiências distintas de ampliar a formação, resultam em estudantes felizes e com bons êxitos na avaliação nacional. O ideal não é reduzir a formação, é ampliar. Os bons resultados passam pela ampliação do escopo formativo.

Se você olhar o currículo das escolas mais caras desse país, elas anunciam o quê? A criatividade, a convivência, diferentes jogos. Esse modelo militarizado reduz todos esses aspectos e foca na obediência, no conteudismo, na doutrinação. É pouco frente a tudo o que nós temos que aprender.

 

Por que o modelo militarizado atrai políticos de diferentes espectros?

Tem dois elementos em relação a isso. A escola como retrato da população conservadora e do neoconservadorismo brasileiro. É o retrato de um liberalismo que quer dizer que as escolas existentes fracassaram. Os colégios militarizados representam esse grupo. Outro fato é que os políticos gostam do cunho eleitoreiro da proposta. Quando a gente olha os dados, vê que em Goiás a militarização acontece no ano anterior às eleições (Nota da redação: Na Bahia ela ocorreu em 2018, ano eleitoral. O governador Rui Costa, que autorizou o modelo, se candidatou e foi reeleito em primeiro turno).

 

Qual a tendência desse processo nos próximos anos?

Pode ser que eu esteja contaminada pelos dados atuais, mas acho que a gente ainda vai ter expansão da militarização por causa da adesão dos governos estaduais e municipais. Seja qual for o resultado das eleições deste ano, a tendência ainda é de crescimento, também nas escolas privadas. O cenário é ruim.

 

O fator financeiro, incluindo os custos dos municípios com obras, salários e uniformes, e a falta de policiais da reserva em muitos municípios baianos não podem limitar o avanço da militarização escolar?

Os modelos existentes podem ser reinventados. Em Goiás não há problemas financeiros nessas escolas porque elas cobram uma taxa [6] para a manutenção e gastos diversos, através da associação de pais e mestres, com apoio da PM. Não é um valor baixo. O Ministério Público diz que não pode cobrar, mas continua do mesmo jeito. Aqui também os responsáveis pela disciplina podem ser policiais da ativa.

 

Na Bahia, o comandante da PM que implementou a militarização vai ser candidato a deputado federal. Uma das bandeiras dele é ampliar o método CPM para outros níveis de ensino.

O que você está falando é um dado muito mais complicado. Provavelmente esse é um candidato eleito, por conta do que a gente conhece das tendências eleitorais. E aí é alguém que vai advogar isso com mais outro grupo, na Câmara dos Deputados. É preocupante em um país que vem valorizando a cultura militarizadora; a cultura de controle e extermínio de determinadas populações; a cultura de morte; de armamento; uma cultura altamente evangélica. E, ao contrário do processo de democratização que visava publicizar ainda mais os espaços privados e garantir direitos, estamos na contramão disso. Estamos privatizando o que devia ser público.

 

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[1] Michael Whitman Apple é um teórico americano especializado em educação e poder, política cultural, teoria e pesquisa curricular, ensino crítico e desenvolvimento de escolas democráticas. Apple desenvolveu um trabalho significativo mostrando que o currículo nada mais é que uma série de temas determinados por agrupamentos sociais, que decidem o que deve ser transmitidos no ambiente escolar. Ou seja, é um instrumento de poder na preservação da sociedade em sua atual configuração. Ele afirma que as políticas em educação não podem ficar restritas ao conteúdo imposto, elas devem ser pensadas como políticas culturais, incluindo fatores como raça, gênero, relações de classe, diferentes identidades, objetivos econômicos e o papel do Estado, algo bem diferente do que estabelece o modelo de ensino militarizado.

[2] Em 25 de maio de 2021 o estado tinha 206 colégios públicos – 15 na capital e 191 no interior – militarizado. Segundo a Rede Lume, iniciativa de jornalismo independente, isto motivou a criação do Observatório de Escolas Militarizadas para promover ações de monitoramento, levantamento de dados e medidas políticas e judiciais contra violações de direitos da comunidade escolar, gerada a partir da decisão do governador Ratinho Jr, aliado do presidente Jair Bolsonaro.

[3] Conteudismo é um conceito utilizado para contextualizar a fragmentação do conhecimento acadêmico, a transferência hierárquica do conhecimento do professor para o aluno, no qual o educando é um mero receptor de conhecimentos, sem se preocupar com a conquista deles de forma natural e sem respeitar o processo de aprendizagem. Trata-se da excessiva exigência de memorização de algoritmos e terminologias, descontextualização e ausência de articulação com as demais disciplinas do currículo, num cumprimento restrito do currículo escolar.

[4] A dissertação “A relação família-escola: a experiência de uma escola pública da periferia de Salvador”, de autoria da professora Janete dos Santos Reis (Universidade Católica de Salvador – 2013) revela que os alunos da unidade, além das aulas regulares, têm atividades de inglês, informática, teatro, artes e capoeira. A proposta pedagógica prevê o ensino de história e cultura afro-brasileira, africana e indígena e existem projetos de inclusão e de complementação educacional (leitura, matemática e recursos tecnológicos) no contraturno, ancoradas no programa Mais Educação. Tudo é destinado a estudantes em contexto de vulnerabilidade social ou que apresentem algum tipo de déficit de aprendizagem. A escola, de acordo com Janete, também acolhe a comunidade nos finais de semana, realizando oficinas pedagógicas, socioculturais e profissionalizantes oferecidas pelo Programa Escola Aberta.

[5] O Programa Escola Aberta incentiva e apoia a abertura, nos finais de semana, de unidades escolares públicas localizadas em territórios de vulnerabilidade social. A iniciativa foi criada em 2004, em parceria com a Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura). Começou no Rio de Janeiro, Bahia e Pernambuco e se expandiu para todo o país.

[6] Por serem públicas, as escolas não podem cobrar taxas. Por causa disso foi criado o artifício da cobrança pela associação de pais e mestres. A alegação do comando da Polícia Militar é que o pagamento é voluntário.

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Esta série de reportagens foi financiada pelo Edital de Jornalismo de Educação, uma iniciativa da Jeduca e do Itaú Social.

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LEIA A SÉRIE COMPLETA

PARTE I

A militarização das escolas na bahiaO avanço para o interior O exemplo goiano Diferentes escolas militares e militarizadas

PARTE II

A elitização da primeira escola militarizada A história do Colégio Maria do Carmo Mães aprovam modelo CPM, filhos nem tantoFundamental I e ensino médio na mira

PARTE III

Conceição do Jacuípe: boletim expõe alunos O regulamento e a cartilha Muita fé e só uma mulher entre 466 tutores Tutor disciplinar barra aluna negra

PARTE IV

Escola troca nome de vítima da ditadura Mais unidades da PM do que infraestrutura Entre a esperança e o bafo da milícia Inquérito 1.14.001.001281

PARTE V – FINAL

Major Fabiana: ‘Disciplina como ferramenta para a vida’O governador emudeceuDepoimentos de ex-alunos do CPM

Jornalista, editor, professor e consultor, 61 anos. Suas reportagens ganharam prêmios de direitos humanos e de jornalismo investigativo.

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