Fundamental I e ensino médio na mira dos coronéis

Paulo Oliveira

 O ex-comandante da Polícia Militar da Bahia (2015-2021), coronel Anselmo Alves Brandão, responsável pela criação do método de gestão compartilhada entre a PM e as secretarias municipais de educação, defendeu a ampliação da metodologia, hoje restrita ao ensino fundamental II, para os primeiros anos escolares. Ele justificou que assim as crianças se habituarão desde cedo aos ritos militares. Atualmente na reserva, o oficial anunciou que disputará as eleições para deputado federal este ano, tendo como bandeira o que chama de “prevenção primária”.

“A Bahia hoje é um grande exemplo para o país. Vou incentivar que façam convênios semelhantes para ajudar a juventude a ter uma educação melhor” – disse.

Já o coronel Jorge Ricardo Albuquerque Pereira, responsável pela sistematização do modelo de gestão compartilhada e atual diretor do Instituto de Ensino e Pesquisa da PM-BA (IEP), revelou que a corporação sempre teve a intenção de propor ao governo estadual a adoção do método no ensino médio, após o sistema completar um ciclo completo, sem interrupções, nas escolas municipais. A ideia é permitir que os estudantes do fundamental II possam dar continuidade aos estudos, ancorados em sistema disciplinar rigoroso. Ele ressalta que quando isto ocorrer, a decisão será da secretaria estadual de Educação.

O coronel Anselmo acrescentou que as escolas militarizadas, termo que rejeita, foram implantadas antes de o presidente Jair Bolsonaro lançar o programa em âmbito nacional, utilizando as Forças Armadas. Ele admite que foi a PM baiana quem procurou um prefeito disposto a implantar o método, a cinco meses das eleições de 2018, que resultaram na reeleição do governador Rui Costa (PT). No ano seguinte, Costa recusou a oferta federal, alegando, segundo Anselmo, que já existiam colégios militares no estado. Bolsonaro resolveu então firmar parcerias com as prefeituras de Feira de Santana e de Vitória da Conquista.

Em defesa de sua proposta, o ex-comandante ressaltou que estudou até o primeiro ano do ensino médio na rede pública de Juazeiro, cidade onde nasceu. Em seguida, ingressou no Colégio da Polícia Militar (CPM), o qual define um grande divisor de águas.

Em dois anos de estudo, na década de 1970, ele diz ter recebido ensinamentos que não teve anteriormente, incluindo muita disciplina e os ritos de horários, saudações e liderança. Anselmo exalta o modelo de gestão compartilhada porque através dele os professores não se atrasam e o tempo de aula é maior.

“Os ritos militares criam foco, melhoram o reflexo e a concentração. Além disso, alteram a cultura de que se pode fazer tudo” – acredita.

Colégios adotam cores do CPM e brasão da Polícia Militar. Foto: Linda Gomes

 

Anselmo Brandão revelou que foi ele quem orientou a primeira prefeita a adotar o novo formato educacional, tendo como critério a instalação do método em bairros vulneráveis, com alto índice de criminalidade e com crianças desassistidas.

“Ela aceitou instalar em uma região muito violenta, onde a polícia era hostilizada. Esse bairro registrava quatro homicídios por ano. Depois, não houve mais assassinatos” – declarou, sem mostrar as estatísticas.

O ex-comandante falou ainda que a gestão compartilhada ajuda a combater diferentes tipos de violência, principalmente a que se instalou nos educandários.

“Você sabe como é que chamavam o colégio, em Conceição da Feira? Carandiru. A polícia sempre estava presente lá, apreendendo faca e até revólver nas mãos de alunos de 12 a 14 anos. Esta unidade também foi escolhida para instalar a gestão compartilhada.

As primeiras mudanças nos estabelecimento escolares têm a ver com a identidade visual. É obrigatória a adoção das cores do CPM – azul, vermelho e branco – e a inclusão do brasão da corporação em placas diversas. Os uniformes dos alunos também são alterados. Nas camisas, é obrigatório constar uma faixa com a identificação e o tipo sanguíneo dos estudantes.

O policial explicou que o governo estadual não dá ajuda financeira. Todas as despesas são do município. E que a equipe disciplinar, formada por PMs da reserva, cuida dos ritos militares. Os coordenadores e tutores colocam os meninos e meninas em forma, acompanham o canto do hino e os levam para as salas de aula no começo de cada turno, por exemplo.

Os disciplinadores, indicados pela polícia, são contratados através do Regime Especial de Direito Administrativo (Reda) ou outro sistema que permita a demissão de quem não se adapta. A Câmara aprova a criação dos cargos de diretor disciplinar, coordenador e tutor, com faixas salariais de R$ 3 mil, R$ 3.500 e R$ 4 mil. A equipes têm em média seis integrantes.

Inauguração em Conceição do Jacuípe. Foto: Acervo do oficial

Com as informações fornecidas pelo mentor do projeto, é possível estimar os gastos apenas com a contratação dos funcionários em uma cidade com uma escola de gestão compartilhada. São R$ 19.500 mensais ou R$ 234 mil anuais, além dos gastos com obras e uniformes. Esses números não são divulgados pelas partes envolvidas no convênio com a alegação de que “os valores são mínimos diante dos resultados obtidos”.

As turmas também têm seus “xerifes”. No entanto, a terminologia é evitada. Na gestão compartilhada, os alunos responsáveis por supervisionar o horário de chegada, a limpeza das salas e apresentar a turma para os professores é chamado de “líder de turma”. Ele fará rodízio com os colegas e ocupará o posto por uma semana.

“O que ocorre com os alunos que passam por essa experiência? Eles ganham responsabilidade. Os professores, antes desse formato, demoravam 20 minutos para disciplinar a turma. Depois voltavam a perder o controle. O menino saía para ir ao banheiro, conversar, namorar e até ia embora com o porteiro correndo atrás. Moral da história: o tempo de aula aumentou e o aluno ganhou mais conteúdo. Alguns professores se opõem porque começam a trabalhar mais” – alegou o coronel.

Em setembro de 2018, o Ministério Público Federal (MPF) instaurou o inquérito civil 1.014.001.001281/2018-02[1] para conhecer e acompanhar as condições de aplicação de metodologia e filosofia militares nas redes de ensino municipais. Foram relacionados no processo pelo menos 88 fatos, normas e irregularidades, incluindo a contratação de PMs da reserva que desconhecem a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB), a imposição aos alunos de padrões estéticos e comportamentos baseado na cultura militar e a violação do direito de liberdade de expressão por não permitir a participação em manifestações de cunho reivindicatório ou crítico dentro e fora dos colégios.

Com relação às notificações do MPF recebidas pela PM, coronel Anselmo disse que algumas “instituições”, usando informações inverídicas, acusam o método CPM de ser limitador e arcaico.

“Elas pegam o rito militar como se fosse um bicho papão. Dizem que tira a liberdade do menino usar barba, brinco e não sei mais o quê. Eu penso assim: quem paga impostos é o cidadão. Ele tem que escolher o que é melhor para a sociedade. Nosso modelo tem vários princípios norteadores. Lógico que  há elementos polêmicos, mas no geral é mais positivo do que negativo” – avaliou, acrescentando que respondeu a todos os questionamentos feitos pelo MPF.

Anselmo Brandão também contestou a versão de que o sistema aumenta o controle sobre as comunidades. Para ele, esse argumento é ideológico e visa politizar a questão.

O CRIADOR DO SISTEMA

O soteropolitano Jorge Ricardo de Albuquerque Pereira estudou em escola pública e teve como professor de estatística um major da PM, que o incentivou a seguir a carreira militar, inclusive levando-o para estagiar na corporação. Em 1984, com 17 anos e oito meses de idade, Albuquerque ingressou na corporação. Desde então faz parte da área educacional da PM.

Formado em ciências contábeis, com especialização em técnica de ensino, em parceria com a Polícia Militar goiana, ele ocupava o cargo de assessor especial do comandante-geral para a área de educação quando recebeu a missão de elaborar o projeto a ser implantado nas escolas municipais. Para isto, adaptou o regimento do CPM, existente há 65 anos, e manteve a parte comportamental na cartilha dos estudantes. Não houve mudanças significativas nos regulamentos até hoje.

A proposta de utilizar o modelo dos colégios da Polícia Militar (CPM) e de fazer convênios foi aprovada pelo governador Rui Costa. A coordenação das escolas conveniadas ficou vinculada ao gabinete do comandante e não ao IEP, órgão que funciona como uma reitoria e define as demandas estratégicas para os CPMs e para os cursos de formação de oficiais e praças.

O projeto-piloto foi implantado em Campo Formoso. Outros quatro municípios adotaram o sistema no final do primeiro semestre de 2018. Estava prevista uma avaliação do ciclo de quatro anos, englobando o ensino fundamental II, para analisar os resultados obtidos, mas a pandemia de covid-19 impediu o processo.

“Os prefeitos, secretários de educação e diretores viram mudanças positivas no primeiro ano de funcionamento. Eles elogiaram a mudança comportamental dos alunos, impactando, inclusive, na manutenção da escola. Os gastos de reposição de carteiras quebradas e com pintura para apagar pichações diminuíram consideravelmente. Assim como melhorou o respeito para com os professores” – disse.

Coronel Albuquerque criou o método CPM de gestão compartilhada. Foto: Paulo Oliveira

Albuquerque esclareceu que a PM participa da escolha do colégio onde a metodologia será implantada, sugerindo que a unidade fique em uma área com determinados conflitos para envolver a comunidade no processo:

“A gente não exige que o colégio tenha bons índices no Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb). Pelo contrário, assim podemos verificar os resultados positivos com mais rapidez” – destacou.

Segundo o atual diretor do IEP, a escolha da equipe disciplinar também é feita com indicação da PM porque em cidades muito pequenas não há efetivo suficiente. E quem tem o conhecimento específico do pessoal da reserva é o departamento de recursos humanos da corporação e os colegas que trabalharam com eles.

Com relação ao processo instaurado pelo Ministério Público Federal, o coronel Albuquerque explica que todos os pontos levantados foram respondidos e, segundo ele, não havia irregularidades. O policial acrescentou que não havia razão para paralisar o processo de implantação porque todas as recomendações da procuradoria foram cumpridas.

Diante das críticas, o coronel repete o argumento de que o direito de matricular o filho em uma escola militar ou que segue o método CPM é dos pais.

“Se o pai está impondo ao estudante é uma situação interna corporis familiar” – avaliou.

Por fim, revelou que existe um plano para estender os convênios para escolas de ensino médio a fim atender a demanda de pais e mães de alunos interessados em dar continuidade aos estudos dos filhos com a mesma metodologia. O ex-coordenador do método CPM disse que o projeto não foi descartado, apesar do atraso provocado pela pandemia de covid-19.

“Em quatro anos, provavelmente, ele será apresentado à secretaria estadual de educação (SEC).” – disse.

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[1] Ver matéria específica sobre o tema em outro capítulo da série

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 Esta série de reportagens foi financiada pelo Edital de Jornalismo de Educação, uma iniciativa da Jeduca e do Itaú Social.

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LEIA A SÉRIE COMPLETA

PARTE I

A militarização das escolas na bahiaO avanço para o interior O exemplo goiano Diferentes escolas militares e militarizadas

PARTE II

A elitização da primeira escola militarizada A história do Colégio Maria do Carmo Mães aprovam modelo CPM, filhos nem tanto

PARTE III

Conceição do Jacuípe: boletim expõe alunos O regulamento e a cartilha Muita fé e só uma mulher entre 466 tutores Tutor disciplinar barra aluna negra

PARTE IV

Escola troca nome de vítima da ditadura Mais unidades da PM do que infraestrutura Entre a esperança e o bafo da milícia Inquérito 1.14.001.001281

PARTE V – FINAL

Miriam Fábia: “Impacto brutal na formação dos jovens”Major Fabiana: ‘Disciplina como ferramenta para a vida’O governador emudeceuDepoimentos de ex-alunos do CPM

Jornalista, editor, professor e consultor, 61 anos. Suas reportagens ganharam prêmios de direitos humanos e de jornalismo investigativo.

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