Muita fé e só uma mulher entre 466 tutores

 Linda Gomes e Paulo Oliveira

Os policiais militares da reserva que atuam como disciplinadores nas escolas estaduais possuem perfil semelhante: são da reserva remunerada, moram na cidade em que trabalham ou próximo dela e, pelo menos nos estabelecimentos de ensino visitados por Meus Sertões, a maioria frequenta igrejas evangélicas. O diretor disciplinar do colégio Professora Maria do Carmo de Araújo Maia, subtenente Bartolomeu Lima e Silva, por exemplo, é pastor de uma igreja em Senhor do Bonfim [1], município a 28 quilômetros da unidade de ensino. Já o subtenente Wilton Cláudio, diretor disciplinar da escola Sérgio Cardoso, em Conceição do Jacuípe, costuma postar mensagens para pais e alunos, em tom de pregação, na página da unidade escolar, no Facebook.


Segundo o sargento José Cruz, diretor militar do Grupo Escolar Professora Laura Ribeiro Lopes, em Conceição do Jacuípe, outros fatores que influenciam na escolha dos tutores é saber lidar com  crianças e ter experiência na área educacional, o que nem sempre é possível. Depois da indicação feita por PMs veteranos e ex-colegas, os candidatos à vaga, cuja remuneração varia de R$ 3.000 a R$ 4.000 [2], são entrevistados pelo responsável da área disciplinar. Os valores equivalem aos cargos de defensor público municipal e subcoordenador da área de Saúde do município, respectivamente.

Sargento Mascarenhas é tutor em Conceição do Jacuípe. Reprodução do Facebook

Além do diretor, os tutores – na proporção de um para 125 alunos – estarão subordinados a um coordenador. Para contratá-los, a Câmara de Vereadores deve aprovar a criação de cargos comissionados, que serão pagos pela prefeitura. O efetivo total de disciplinadores nas cidades que implantaram o sistema do Colégio da Polícia Militar (CPM) é de 466 PMs. O gasto médio anual  com equipes de seis componentes é de R$ 234 mil. Neste patamar, estima-se o valor da remuneração de todo o efetivo disponível no estado em R$ 18 milhões e 147 mil [3] .

Atualmente, segundo o comando da PM, 465 homens e apenas uma mulher trabalham na função. O reduzidíssimo número de PMs femininas se deve ao baixo efetivo feminino na reserva, de acordo com a major Fabiana Guanaes, coordenadora-geral das escolas modelo CPM. Vale lembrar que corporação na Bahia só permitiu o ingresso de mulheres em 1990, 45 anos depois do pioneirismo da Polícia Militar de São Paulo. Já o sargento Cruz diz que tem tentado atrair as policiais para a missão, mas elas argumentam que não querem trabalhar após a aposentadoria.

A ausência de PMs femininas na equipe parece preocupar o major Miguel Ângelo de Souza Veloso Monteiro, comandante da 54ª Companhia Independente, em Campo Formoso. Em palestra de alinhamento para a comunidade escolar, incluindo os agentes disciplinares, ele destacou a importância dos casos que envolvam meninas sejam tratados pela diretora da Escola Maria do Carmo Araújo Maia e não pelos policiais da reserva.

“A gente sabe que uma palavra errada pode virar a terceira guerra mundial” – salientou o oficial.

A major Fabiana Guanaes, coordenadora-geral das escolas militarizadas pelo sistema CPM, considera positivo o impacto provocado pela recolocação profissional dos policiais:

“Tem policial que não se adapta a parar de trabalhar. Algumas pessoas vão para o vício, para o álcool; outras ficam largadas, depressivas. No momento em que eles conhecem o modelo CPM, eles encontram uma oportunidade de se sentir útil. Os policiais também ganham uma melhoria financeira, que ajuda muito” – analisa.

O sargento Cruz concorda com a oficial. Ele afirma que a vida dele voltou a ter dinamismo ao cuidar de 600 “novos filhos” no colégio.

A MISSÃO

O papel dos disciplinadores não se limita ao acompanhamento dos alunos na escola. De acordo com o subtenente Bartolomeu, desde 2018 como diretor disciplinar, a maior dificuldade foi mudar a cultura comportamental dos estudantes, pois estavam acostumados a frequentar um ambiente sem regras rigorosas.

“Eles tiveram maior resistência para ficar formados, em pé, durante os momentos cívicos. Todos os dias, nos horários de entrada e saída, têm que ir para a quadra para fazer ordem unida, cantar o hino nacional e da bandeira e ouvir preleções. A gente estimou que eles se adaptariam em seis meses, mas em dois os estudantes tinham absorvido essa proposta” – comenta o diretor.

Bartolomeu é da equipe disciplinar de Campo Formoso desde 2018. Foto: Paulo Oliveira

Outra novidade foi a disciplina que passou a ser chamada de Metodologia Disciplinar de Ensino (MDE) em substituição ao termo Instrução Militar. A terminologia original, considerada cabível apenas para ambientes de caserna, foi alterada porque na avaliação dos PMs, isso promoveria um impacto negativo e criaria a ideia de doutrinamento. O nome mudou, mas o conteúdo permaneceu o mesmo.

“Podemos comparar o MDE à formação dada aos estudantes nos anos 1970 e 1980, quando havia Educação Moral e Cívica e OSPB. É a difusão da cultura do bom cidadão, dos valores reais de família e do exercício de cidadania. Ensinamos ética, moral e bons costumes, reavivando em sala de aula o que eles ouvem nas paradas matinal e vespertina” – explica Bartolomeu.

As aulas de MDE são ministradas pelos tutores duas vezes na semana, às segundas e quintas-feiras, durante um tempo de aula normal. Além desta tarefa, a equipe disciplinar fiscaliza o comportamento dos alunos, o deslocamento deles nas áreas permitidas. A ida ao banheiro, por exemplo, só é permitida para dois alunos, aos quais os professores entregam crachás. Enquanto eles não voltarem, ninguém mais pode sair da sala. Além disso, a Polícia Militar exige que as portas do local de aula tenham visores de vidros ou acrílico para que os disciplinadores possam fiscalizar como as turmas se comportam.

Bartolomeu revelou ainda que a equipe disciplinar acompanha os estudantes nos ônibus escolares e têm contato com pais e alunos nas residências deles:

“Muito de nosso trabalho conquista resultados no contato com a família, além da busca ativa, sistema de acompanhamento, identificação de problemas e apresentação de soluções para evitar a evasão escolar. Realizamos reuniões com as famílias para que os pais fiquem cientes do comportamento das crianças e adolescentes. Muitas vezes, eles ficam surpresos com o que narramos. Graças a Deus, esta interatividade é muito forte” – acrescenta.

O diretor disciplinar disse que o trabalho da equipe é feito em conjunto com os professores ,e as decisões que envolvem transferências por motivos comportamentais são decididas pelo Comitê Disciplinar, composto pela vice-diretoria da escola, pelos tutores e professores do avaliado. A decisão final caberá aos dois diretores.

__________________________________________________________________________

[1] De acordo com o que foi apurado no inquérito aberto pelo Ministério Público Federal (MPF) para acompanhar as condições da aplicação da metodologia dos colégios militares em escolas municipais, a equipe disciplinar da Escola Professora Maria do Carmo de Araújo Maia era formada por um capitão, um subtenente e quatro sargentos. Destes, quatro moravam em Senhor do Bonfim (25 km de distância), um residia em Pindobaçu (34 km de distância) e o último, em Campo Formoso.

[2] Os valores atuais de remuneração foram informados pelo ex-comandante da PM, coronel Anselmo Brandão. Os primeiros contratados, no entanto, recebiam entre R$ 2.000 e R$ 3.000, de acordo com informações prestadas por prefeitos ao MPF . O processo mostra ainda que o município de Dias D’Ávila oferecia salários superiores à época (entre R$ 2.095 e R$ 3.206).

[3] Se levarmos em consideração os valores pagos nos primeiros contratos para os policiais da reserva, os gastos anuais com cada equipe de seis componentes e com todo o efetivo que ocupa a função de disciplinador é de, respectivamente, R$ 162 mil e R$ 12 milhões e 571 mil.

 

–*–*–

Esta série de reportagens foi financiada pelo Edital de Jornalismo de Educação, uma iniciativa da Jeduca e do Itaú Social.

–*–*–

LEIA A SÉRIE COMPLETA

PARTE I

A militarização das escolas na bahiaO avanço para o interior O exemplo goiano Diferentes escolas militares e militarizadas

PARTE II

A elitização da primeira escola militarizada A história do Colégio Maria do Carmo Mães aprovam modelo CPM, filhos nem tantoFundamental I e ensino médio na mira

PARTE III

Conceição do Jacuípe: boletim expõe alunos O regulamento e a cartilha Tutor disciplinar barra aluna negra

PARTE IV

Escola troca nome de vítima da ditadura Mais unidades da PM do que infraestrutura Entre a esperança e o bafo da milícia Inquérito 1.14.001.001281

PARTE V – FINAL

Miriam Fábia: “Impacto brutal na formação dos jovens”Major Fabiana: ‘Disciplina como ferramenta para a vida’O governador emudeceuDepoimentos de ex-alunos do CPM

Jornalista, editor, professor e consultor, 61 anos. Suas reportagens ganharam prêmios de direitos humanos e de jornalismo investigativo.

follow me
Compartilhe esta publicação:
Facebook
Twitter
LinkedIn
WhatsApp
Email

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Sites parceiros
Destaques