Escola quilombola, localizada em uma das ilhas da Baía de Todos-os-Santos, enfrenta imensos desafios para cumprir a Lei de Diretrizes e Bases da Educação
Paulo Oliveira
A Ilha de Maré pertence ao município de Salvador. Ela fica a 4,6 milhas náuticas (cerca de 8,6 quilômetros) do continente. Para chegar até lá é preciso pegar uma barco no que já foi um terminal marítimo ou na praia de São Tomé de Paripe, onde é impossível embarcar sem se molhar.
Até 2016, as viagens tinham horário marcado. Um imbróglio entre a empresa que fazia a manutenção do terminal e a Agência Estadual de Regulação de Serviços Públicos de Energia, Transportes e Comunicações da Bahia (Agerba), órgão regulador do governo estadual, deixou o local abandonado.
Agora quem decide a hora da partida do continente para ilha são os donos dos barcos, que esperam lotar os lugares disponíveis. A espera dura entre duas e três horas. Quem quiser apressar a saída, tem que pagar R$ 80, o equivalente à lotação esgotada.
Esse não é o único problema enfrentado pelos moradores da Ilha de Maré, considerada bairro da capital baiana. Dividida em 16 localidades, sendo cinco comunidades quilombolas [1], a ilha tem 4.236 habitantes [2] , que vivem da pesca e da coleta de mariscos.
Próxima da refinaria de Mataripe, do porto e do Complexo Industrial de Aratu (CIA), a ilha sofre com a contaminação das águas e dos manguezais por resíduos industriais. Além disso, o saneamento é inexistente. Tudo isso colabora para o adoecimento dos moradores. Em 2013, uma pesquisa feita por Neuza Miranda, professora da escola de nutrição da UFBA, comprovou que a população, principalmente crianças, estava intoxicada com metais pesados que atingem os peixes e os moluscos da Baía.
Com tantos problemas, seria milagre as seis escolas insulares estarem ilesas. Os estabelecimentos de ensino são divididas em dois tipos: os quilombolas, que estão em territórios remanescentes de quilombos; e os de educação escolar quilombola, que recebem alunos dessas comunidades, mas não estão em áreas onde os escravizados se refugiavam.
Meus Sertões foi à Escola Municipal de Ilha de Maré, na localidade de Praia Grande, para verificar em que estágio está a implantação da lei 10.639. Além de creche, pré-escolar, fundamental I e regularização de fluxo, a unidade é a única a oferecer aulas para adolescentes do ensino fundamental II. Por isso, recebe estudantes de todas as comunidades. No total, são 588 alunos, divididos em dois turnos (matutino e vespertino), e 31 professoras e professores.
A primeira reclamação dos responsáveis pela aplicação legislação sancionada em 2003 vem poucos segundos depois da pergunta sobre o que mudou na unidade, após a implantação da obrigatoriedade do ensino de história e cultura da África e afro-brasileira.
“A gente não conseguiu perceber o que mudou” – diz uma professora.
Ela é apoiada pelas colegas, que apontaram a forma de contratação dos profissionais e a falta de investimento em formação como empecilhos para a realização de um trabalho mais eficiente.
Gestores e gestoras creditam ao processo seletivo simplificado para contratação de pessoal por tempo determinado em Regime Especial de Direito Administrativo (REDA) o papel de vilão pela falta de continuidade do ensino. Por este sistema, as contratações são feitas por dois anos, renováveis por igual período apenas uma vez.
“Há muito tempo que a escola virou um entra e sai danado”, diz uma docente.
Segundo a mesma profissional, que pediu para não ser identificada, quando os servidores começam a se apropriar do conhecimento da cultura local e a trabalhar com desenvoltura as diretrizes da lei 10.639, eles são obrigados a deixar a unidade.
“Aí temos que começar do zero. A sensação é que a gente está sempre remando contra a maré” – acrescenta.
Ela também recorda que todos os professoras e professores que fizeram a formação do Projeto Griô [3], durante a pandemia de Covid-19, não pertencem mais aos quadros da escola. Atualmente, 55% dos docentes [4] são professores temporários.
Outras queixas estão relacionadas à demora para a Secretaria Municipal de Educação (Smed) solucionar problemas e acompanhar de perto as ações feitas nas escolas da Ilha de Maré.
Em 2023, o ano letivo começou sem professor de história, o que perdurou durante o primeiro trimestre. No segundo, enviaram uma professora temporária, que foi substituída no terceiro trimestre por um profissional efetivo. Três realidades distintas em pouco tempo.
A PANDEMIA E OUTRAS MAZELAS
Sem apoio institucional constante, cada educador se esforça para cumprir a sua parte. A atual esperança da comunidade escolar é que a Smed cumpra a promessa de inaugurar um centro de formação profissional continuado.
“A gente entende que outra fragilidade é a formação de professores. Atualmente, além de gerenciar a escola, precisamos correr atrás de quem possa vir preparar os professores mais novos. A Smed tinha que ofertar uma série de cursos e consultar quais eram os prioritários para cada escola” – reclamam os servidores.
A realização de um concurso que priorize a efetivação de professores que moram na Ilha é outro desejo. Isto porque as seleções para concursados exigem curso superior, o que não contempla a mão de obra local. Apesar disso, os defensores da contratação de educadores quilombolas argumentam que eles conhecem melhor do que ninguém a cultura local e que as universidades não possuem formação específica para contemplar o que a lei 10.639 exige.
“Eu me formei há 10 anos e não tive informação nenhuma sobre a legislação que tinha entrado em vigor uma década antes de eu fazer curso superior” – contrapõe uma professora.
Com relação ao desempenho dos estudantes, a direção do colégio informou que os prejuízos causados pela pandemia de Covid-19 ainda persistem. Os alunos que estavam no sexto ano, em março de 2020, só voltaram a ter aulas regulares em 2022.
Na mesma época que os adolescentes foram para o oitavo ano, a secretarua decidiu reformar a escola. Os estudantes não estavam motivados e as aulas eram dia sim, dia não. As obras terminaram no segundo semestre. Portanto, o ensino fundamental II teve apenas um ano e meio de duração para os alunos do nono ano, que recentemente, fizeram concurso para o Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia da Bahia (IFBA) .
O número de inscritos não foi divulgado. Mas, o secretário de Educação Thiago Dantas considerou nove aprovações “um reflexo do trabalho desenvolvido pela rede municipal”[5]. Independente da falta de transparência sobre a proporção candidatos/admissão, a aprovação não garante que todos os estudantes sejam matriculados.
A Escola Ilha de Maré informou que, em um exame anterior, 16 alunos passaram. No entanto, apenas seis foram matriculados. O motivo para a maioria das desistências foi a falta de condições financeiras das famílias. Elas não tiveram como custear os gastos com transportes e alimentação. A unidade do IFBA, segundo os professores, está localizada no município de Simões Filho.
“Os alunos precisam acordar muito cedo para pegar uma embarcação para o continente. De Paripe até o instituto são 32 quilômetros, percorridos por um carro de linha. O custo é alto. Seria preciso criar políticas públicas para apoiar os estudantes. Como é que eu tenho 16 crianças quilombolas, aprovadas em uma instituição de referência com potencial para mudar a vida deles, e não tenho como atendê-los?” – questiona a mãe de um aluno.
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Notas de rodapé
[1] Bananeiras, Praia Grande, Martelo, Ponta Grossa e Porto dos Cavalos
[2] População residente em 2019, segundo a Superintendência de Estudos Econômicos e Sociais da Bahia (SEI)
[3] Nome dado aos indivíduos que detêm a memória do grupo e difundem as tradições.
[4] São 17 contratados pelo REDA e 14 efetivos.
[5] Matéria publicada no Portal A Tarde, no dia 3 de dezembro.
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Legenda da foto principal: Fachada da Escola Municipal Ilha de Maré. Foto: Paulo Oliveira
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A pauta desta série de reportagens foi selecionada pelo 5º Edital de Jornalismo de Educação, uma iniciativa da Jeduca e Fundação Itaú.
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Leia a série completa
PARTE I
A lei fracassou? As estratégias dos movimentos negros O protagonismo dos terreiros e dos blocos afro Yabás em movimento As yabás I - Mãe Hildelice dos Santos
PARTE II
A escola do portão verde As yabás II – Ana Célia da Silva A hora da verdade O longo e desgastante trâmite no Congresso
PARTE III
Assuntos sobre negros importam A resistência de Lázaro Formação continuada na Uneb Escola reflete filosofia africana As yabás III – Vanda Machado O projeto pedagógico Yrê Aió
PARTE IV – FINAL
'Nenhum secretário teve a temática racial como prioridade' O silêncio absurdo de Thiago Remando contra a maré Pesquisa mostra a realidade brasileira Olívia e os novos desafios As yabás IV - Jacilene Nascimento
- Author Details
Jornalista, editor, professor e consultor, 61 anos. Suas reportagens ganharam prêmios de direitos humanos e de jornalismo investigativo.
Uma resposta
Caro Sr Paulo Oliveira,
Fizemos a leitura da reportagem “Remando contra a maré”, que cita nossa escola, e gostaríamos de pontuar que no texto não houve espaço para os pontos positivos abordados. Os relatos do trabalho dos profissionais desde a Educação Infantil, passando pelo Ensino Fundamental Anos Iniciais e fechando o ciclo com o Ensino Fundamental Anos Finais, que trazem nas suas práticas a valorização da cultura local e a valorização da cultura africana. Foram apontadas as nossas dificuldades, mas é importante para o fortalecimento, empoderamento e autoestima da nossa comunidade escolar, que os pontos positivos que existem também sejam enaltecidos. Como foi relatado, enquanto profissionais acreditamos que nos cursos de licenciatura falta esse trabalho com os graduandos, voltado para a aplicação das Leis 10.639 e 11.645 no currículo das disciplinas e também expressamos o desejo de formação continuada em serviço que traga mais suporte para aplicações nos diferentes segmentos e componentes curriculares.
Porém relatamos também no decorrer de nossa explanação, que a nossa escola trabalha a lei 10.639 não pela lei em si, mas pela consciência de estar imersa em um território quilombola, no qual as questões relacionadas às culturas afro-brasileira e indígena fazem parte de modo natural dos trabalhos em sala de aula, não apenas no mês de novembro.
Em tempo, reafirmamos que em relação aos contratos temporários, os profissionais são competentes e comprometidos, não sendo eles o problema apontado, mas sim o encerramento breve dos seus contratos, diante do aprendizado e vivências que acumulam na prática docente e que só contribui de forma positiva para a realização de um trabalho relevante aos estudantes.
Finalizamos agradecendo esse espaço de comunicação e nos colocamos à disposição para esclarecimentos que se fizerem necessários.
Atenciosamente,
Equipe Gestora EMIM
Mensagem enviada por WhatsApp em 16 de dezembro de 2023, às 14h36