O exemplo goiano

Linda Gomes e Paulo Oliveira

O governo baiano teria se espelhado no sucesso obtido pelo êxito da experiência de colégios da Polícia Militar de Goiás. Essa hipótese foi aventada pelo dirigente da Fundação Conquistense Edivanda Maria Teixeira (Fucemate), Daniel Piccoli, um dos responsáveis pelo movimento para a retirada do nome da professora da escola que adotou o sistema CPM recentemente, em Vitória da Conquista. Edivanda foi perseguida pela ditadura. Corroboram para esta versão os seguintes fatos:

No dia 17 de novembro de 2015, o então governador de Goiás, Marconi Perillo (PSDB), discursou para empresários e políticos em evento organizado pelo Grupo de Líderes Empresariais (Lide Bahia), em Salvador. Na ocasião, Perillo anunciou a intenção de terceirizar 300 escolas estaduais (25% da rede), mesmo ciente das resistências que enfrentaria.

Após classificar a lei de estabilidade do funcionalismo público como a coisa “mais imbecil que existe” e ressaltar que não via condições de avanço educacional com sindicatos agressivos e “professores pedindo licença para tudo”, Perillo exaltou a experiência dos colégios militarizados de Goiás. Contou ainda como usou os Colégios Estaduais da Polícia Militar de Goiás (CEPMGs) com outras finalidades:

“Fui num evento e tinha um grupo de professores radicais da extrema esquerda me xingando. Eu disse: tenho um remedinho pra vocês: colégio militar e organização social. Identifiquei as oito escolas desses professores. Preparei um projeto de lei e em seguida militarizei essas oito escolas. O Brasil está precisando de ‘nego’ que tenha coragem de enfrentar”.

Na reportagem, consta que o governador foi muito aplaudido e que Ney Campelo, posteriormente nomeado superintendente de política para educação básica e assessor técnico da Secretaria Estadual da Educação, estava na plateia. Ney, ex-aluno do Colégio da Polícia Militar, saiu em defesa de Rui Costa quando ele sofreu críticas por apoiar o projeto de implantação da metodologia do CPM baiano nos municípios do interior.

No artigo “Juventude e educação: a militarização das escolas em Goiás”, publicado pela Universidade Federal de Santa Maria (RS), em 4 de setembro de 2021, na revista Educação -, o sociólogo Flávio Munhoz Sofiati e o jornalista especializado em políticas públicas Caio Henrique Salgado Barbosa analisam o fenômeno de “intervenção militar em colégios públicos” goianos. Vale lembrar que os policiais militares de lá assumiram de forma plena a gestão escolar.

Sofiati e Barbosa narram que o processo foi regulamentado em 2001, quando Marconi Perillo, em primeiro mandato, sancionou a lei que criava unidades de ensino fundamental e médio, dirigidas por oficiais nomeados pelo comandante-geral da PM. A iniciativa não teve repercussão à época. Em 2015, em sua quarta gestão, o político voltou à carga e militarizou oito colégios na capital e na região metropolitana. Nos três anos seguintes, a Polícia Militar de Goiás passaria a ser responsável por 63.595 alunos, o equivalente a 12,4% do total da rede estadual. Atualmente, a polícia controla 60 unidades em 46 municípios.

Reportagem do jornal O Popular, de 20 de maio de 2019, acrescenta que o número de escolas militarizadas poderia passar para 97, conforme previsto em lei. Mas isto não ocorreu por causa da falta de efetivo e de recursos financeiros. Uma semana antes, 159 policiais foram remanejados dos colégios para reforçar a segurança nas ruas e para conter despesas. Mesmo assim, 864 militares – 303 da ativa e 561 da reserva – atuavam nas escolas.

O regimento interno dos colégios da PM goiana tem 74 páginas e 276 artigos. Nele, além do rigor disciplinar imposto ao corpo discente, fica claro o controle sofrido pelos professores. Nas páginas 40 e 41, consta que é vedado aos docentes “fazer proselitismo religioso, político-partidário ou ideológico, em qualquer circunstância, bem como pregar doutrinas contrárias aos interesses nacionais, influenciando os demais membros da comunidade à tomada de atitude indisciplinada, irreverente ou de agitação, ainda que de forma dissimulada”.

Também é proibido “falar, escrever ou publicar artigos ou dar entrevistas, ou ainda divulgar assunto que envolva, direta ou indiretamente, o nome do CEPMG e da comunidade escolar, em qualquer época, sem que para isso esteja autorizado pelo comandante e diretor”.

Outra invenção dos militares são as taxas mensais e a cobrança de preço por quatro tipos diferentes de uniformes, o que tira o caráter de gratuidade das escolas públicas. A PM de Goiás alega que não há mensalidade, mas sim colaborações voluntárias necessárias para a realização de benfeitorias.

MODELO MILITAR PRÓPRIO
Alunos da escola militarizada Gercina Teixeira (EMMGT), em Piranhas, Goiás. Foto cedida pelo Jornal O + positivo

Com a recusa da PM em assumir escolas municipais de Goiás pelos motivos que impedem a expansão do controle nos colégios estaduais, pelo menos seis prefeituras – Moiporá, Piranhas, Acreúna, Alto Horizonte, Indiara e Quirinópolis – criaram modelos próprios de militarização. Isto foi relatado em reportagem de Thalys Alcântara, em 22 de março de 2019, bom exemplo de como a situação pode ficar muito mais complexa.

O repórter revelou que os prefeitos decidiram criar fardas, hinos e símbolos em alusão ao militarismo. O material difere do usado nos colégios geridos pela PM. Outra diferença apontada foi a faixa etária dos estudantes. Enquanto nas escolas estaduais, o sistema é voltado para alunos do 5º ao 9º ano, nos municípios o público alvo vai do ensino infantil (crianças menores de seis anos) ao fundamental (de seis a 14 anos). O currículo também sofreu alterações com a inclusão de disciplinas como “Ética e Cidadania” e “Ordem Unida”.

Thalys destaca que, exceto a unidade de Alto Horizonte, os demais colégios estão na região sudoeste do estado, onde fica a cidade de Rio Verde, sede da Athenas Cursos Gerenciais, empresa responsável por seis das sete escolas militarizadas. A microempresa de treinamento profissional e gerencial pertence à pedagoga Deusdetina Alves de Alecrim. Em 2019, ela cobrou R$ 17 mil para implantar o sistema em Acreúna, a 80 quilômetros de Rio Verde.

Deusdetina, ex-funcionária do CEPMG de Rio Verde, trabalha em parceria com o sargento reformado Eterno Pereira de Paula. Ela rejeita o termo “militarização”. Prefere chamar “gestão compartilhada”, assim como os policiais militares da Bahia e de outros estados, embora o termo esteja incorporado ao nome das escolas. Os tutores disciplinares dessas unidades de ensino fizeram ou fazem parte da PM, Corpo de Bombeiros ou Exército.

Estas iniciativas foram reguladas por projetos de lei aprovados nas Câmaras de Vereadores. A justificativa é o suposto apoio da população.

Em Moiporá, o sistema de ensino foi criado pela organização não governamental (ONG) Guardiões da Vida, voltada ao escotismo e presidida pelo coronel reformado da PM e pastor evangélico Élvio Mendes de Castro. Segundo a reportagem, o oficial diz que, mesmo com pouca idade, as crianças estão aptas para seguir o regime imposto.

O condicionamento imposto aos alunos é exposto em vídeos nas páginas dos colégios no You Tube. No caso da unidade de Acreúna (GO), a doutrinação, a ordem unida e a iniciação de canções de treinamento físico militar (TFM) fazem com que boa parte dos estudantes manifeste vontade de seguir a carreira militar. Isso pode ser visto no vídeo abaixo, no qual autoridades e pais, que os aplaudem as crianças de pé. As consequências do ensino militarizado na formação de crianças e jovens serão discutidas em outro capítulo da série.

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Esta série de reportagens foi financiada pelo Edital de Jornalismo de Educação, uma iniciativa da Jeduca e do Itaú Social.

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LEIA A SÉRIE COMPLETA

PARTE I

A militarização das escolas na bahiaO avanço para o interior Diferentes escolas militares e militarizadas

PARTE II

A elitização da primeira escola militarizada A história do Colégio Maria do Carmo Mães aprovam modelo CPM, filhos nem tantoFundamental I e ensino médio na mira

PARTE III

Conceição do Jacuípe: boletim expõe alunos O regulamento e a cartilha Muita fé e só uma mulher entre 466 tutores Tutor disciplinar barra aluna negra

PARTE IV

Escola troca nome de vítima da ditadura Mais unidades da PM do que infraestrutura Entre a esperança e o bafo da milícia Inquérito 1.14.001.001281

PARTE V – FINAL

Miriam Fábia: “Impacto brutal na formação dos jovens”Major Fabiana: ‘Disciplina como ferramenta para a vida’O governador emudeceuDepoimentos de ex-alunos do CPM

 

Jornalista, editor, professor e consultor, 61 anos. Suas reportagens ganharam prêmios de direitos humanos e de jornalismo investigativo.

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