Paulo Oliveira
Uma escola em processo de elitização e excludente. Este é o caminho que o Colégio Maria do Carmo de Araújo Maia, em Campo Formoso (BA), o primeiro a adotar o sistema compartilhado com a Polícia Militar na Bahia, tomou desde que se transformou na primeira escola municipal militarizada do estado. O diagnóstico feito por um oficial que comanda uma equipe disciplinar no interior bate com o que Meus Sertões encontrou no município ao reconstituir a experiência com os antigos gestores e os atuais responsáveis pela prefeitura e pelas áreas educacional e de segurança. Essa história começou em 2018.
A economista e ex-prefeita de Campo Formoso Rosângela Maria Monteiro de Menezes, conhecida como Rose Menezes, conta que foi procurada pelo coronel Mascarenhas com a oferta de implantar o sistema do Colégio da Polícia Militar (CPM) em escolas municipais. O oficial apresentou estatísticas demonstrando que os maiores índices de criminalidade pertenciam aos bairros no entorno do Colégio Maria do Carmo de Araújo Maia, na periferia da cidade.
Além de sugerir o local como ideal para iniciar a experiência no estado, o oficial, segundo a ex-prefeita, fez uma proposta ousada a ser realizada no segundo ano da iniciativa: instalar o sistema cívico-militar em pelo menos um colégio das sete regiões que compõem o município – Laje dos Negros, São Tomé, Curral Velho, Araras, Tiquara, Tuiutiba e Poços. À época, o comando da corporação buscava um gestor municipal interessado em investir no projeto e servir de exemplo para os demais prefeitos do estado.
A ideia da implantação no interior esbarrou no reduzido número de policiais da reserva que deveriam compor a equipe disciplinar das escolas. Tanto que até hoje a maioria dos tutores e superiores que atuam em Campo Formoso mora em Senhor do Bonfim, a 26 quilômetros de distância. A respeito da primeira equipe, ela revela que foi montada por indicação do comando da PM, sem processo seletivo rigoroso.
“A gente teve de fazer correções porque alguns militares mantinham a postura do policiamento na rua. Os jovens são muito sensíveis e é preciso estar preparado para cuidar deles. A gente via que uns PMs da reserva tinham mais polidez e mais trato com os adolescentes do que outros” – observa.
Para servir de experiência ao projeto da Polícia Militar, a prefeitura também acertou que as rondas escolares feitas pela 54ª Companhia Independente seriam intensificadas. O objetivo era reduzir as ocorrências policiais nos sete populosos bairros em torno da escola, o que teria acontecido.
Em seguida, Rose Menezes diz ter percebido a necessidade de fazer adequações diversas na escola e em outras unidades da rede municipal para atender as exigências da PM. A primeira foi fazer melhorias nas dependências do Colégio Maria do Carmo. Lá não havia refeitório, auditório, quadra, nem cobertura no pátio interno. Mesmo sem as obras previstas, a experiência começou de forma improvisada.
Uma das medidas adotadas foi utilizar o ginásio de esporte mais próximo, no qual passaram a ser ministradas aulas de reforço escolar e de alfabetização, além de atividades esportivas, música e dança. Na realidade, essa adaptação foi feita solução para atender os alunos em situação de distorção idade-série, não aceitos no modelo CPM.
“Nós selecionamos alunos que não sabiam ler e fizemos um trabalho com eles, pois precisavam de uma atenção maior. Pegamos uma escola e colocamos quem estava nessa situação. As transferências foram feitas a partir do diálogo com os pais” – conta.
O colégio escolhido foi o José Telesphoro, localizado a cerca de três quilômetros do bairro Santa Luzia.
A ex-prefeita ressalta ainda que contou com o apoio de mais de 90% dos total de pais de alunos, mas encontrou resistência por parte dos professores para implantar a gestão compartilhada.
“Uns não tinham o perfil adequado e outros não queriam se adequar de jeito nenhum. E eu não podia mexer com eles porque eram efetivos. Acredito que teríamos obtido melhor resultado se pudéssemos colocar profissionais mais identificados com a escola e a metodologia do CPM” – avalia.
Rose considera que a oposição sempre esteve relacionada ao “ranço político e a mediocridade de pessoas que colocam o interesse partidário acima do bem comum”.
Sobre o custo de implantação, a ex-prefeita não vai além do custo mensal com a equipe disciplinar, em torno de 20 mil reais na época. Ela admite que poupou no que foi possível, utilizando servidores para pintar a escola nas cores da Polícia Militar e comprando uniformes com padrão um pouco inferior ao que pretendia.
A ex-gestora municipal intencionava se reeleger tendo o projeto educacional implantado como uma de suas principais realizações, mas perdeu as eleições e viu a escola ser transferida pelo atual prefeito Elmo Nascimento para a entrada da cidade. Rose não poupa críticas ao adversário:
“Quando a escola saiu do bairro, ela perdeu a razão de ser. Perdeu, espero que não totalmente, a integração escola-comunidade-polícia, além de desvalorizar os bairros periféricos” – diz.
Perguntada se uma metodologia que desse mais liberdade e fizesse os alunos se sentirem pertencentes à comunidade escolar não seria melhor do que um sistema impositivo e extremamente rigoroso, Rose Menezes ponderou que o momento atual não permite que isto aconteça:
“Mais liberdade pode ser concedida em outro momento do Brasil. Agora estamos com tanta coisa desconstruída ou em desconstrução. O que a criança vai ser diante disso? Como formar pensamento crítico se não existe ambiente de disciplina para que ele possa aprender e desenvolver esse pensamento?”.
A professora de geografia Florineide Andrade de Oliveira foi a segunda diretora do Colégio Maria do Carmo, ainda na gestão de Rose Menezes. Antes de atuar na escola de gestão compartilhada, ela trabalhou 19 anos com crianças em acentuada distorção idade-série, na comunidade quilombola de São Tomé, a 86 quilômetros da sede do município.
A curiosidade sobre o método praticado nas escolas da PM a levou a aceitar o convite da então prefeita. Na sua avaliação, os professores tinham de se portar de forma autoritária muitas vezes, porque os alunos não se portavam como os docentes queriam. A partir do momento que passaram a contar com a proteção de policiais, os docentes tiveram um ambiente melhor e começaram a utilizar novos recursos.
Florineide é uma das defensoras do ensino de Metodologia Disciplinar de Ensino (MDE), ministrada pelos policiais da reserva. São dois tempos de aula semanais de instrução militar e conteúdo equivalente ao de Educação Moral e Cívica e Organização Social e Política Brasileira (OSPB) para cada turma.
“A MDE também estabelece a organização de estrutura de aula. Por exemplo, o lugar onde cada aluno vai sentar, de acordo com a ordem da caderneta. Eles não sentam onde querem. E a primeira carteira é ocupada pelo xerife e a segunda, pelo subxerife” – explica.
As duas designações, hoje chamadas de líderes de turma por causa das críticas com a utilização de nomes que remetem ao militarismo, se referem a estudantes que se revezam semanalmente no processo de controle disciplinar das turmas. Eles também têm como função, de acordo com a ex-diretora, encaminhar os estudantes que conversam em sala de aula ou cometem bullying para o corpo disciplinar.
“O xerife leva um papel, uma orientação, assinada pelo professor com a infração cometida. Ele deixa o colega lá e volta à sala de aula” – diz.
Além disso, o líder ajuda a controlar a turma nos horários de entrada, antecipado em 15 minutos desde a adoção do método disciplinar, e na saída, ampliado pelo mesmo período. Nesses momentos, os estudantes entram em forma nas quadras para cantar hinos, se colocar em posição de sentido e ouvir preleções dos militares da reserva.
“É tão bonito!” – comenta Florineide.
Durante as aulas, os tutores disciplinares fazem rondas no pátio e no entorno da escola.
Depois de detalhar as ações disciplinares, a ex-diretora conta que inicialmente a escola tinha três turnos, sendo que o último era voltado para a Educação de Jovens e Adultos (EJA), abolida na unidade após o convênio com a PM. Ela relata que alguns alunos também resistiram à mudança.
“Nos primeiros seis meses era carro da Samu na escola para atender alunos que desmaiavam. Os desfalecimentos aconteciam porque eles não estavam acostumados a ficar em pé para cantar o hino e para a preleção. Eu achava que alguns estavam fingindo” – observa.
Os desmaios ainda acontecem, segundo tutores e professoras, porque os alunos não se alimentam direito antes de ir para o colégio.
Florineide também relata que muitos alunos pediram para sair da escola, mas isso só era possível com a concordância dos pais. Ela, porém, não esquece de um caso extremo:
“Em 2019 teve um aluno que ia para a escola e ficava o tempo todo no banheiro. Os tutores comprovaram que ele não fazia uso de nada ilícito, só queria ficar ali. Depois, passou a faltar com frequência. Chamamos o pai e ele para conversarmos. Na minha frente, o menino disse que se fosse obrigado a estudar ali ia se matar. Eu fiquei preocupada e recomendei que ele fosse matriculado em uma escola noturna. Ele tinha 14 anos e queria começar a trabalhar. Era pobre de Jó” – conta.
Na prática, segundo a professora Rose Menezes, menos de 10% dos estudantes pediram a transferência do colégio com a chegada da PM. Houve também mudanças por conta de casos extremos de disciplina. Por não conseguirem convencer a família para trocá-los de colégio, adolescentes arrumavam confusão com outros alunos.
Florineide se colocou contra a mudança da escola para outro bairro e justificou, dizendo que ela gerava um efeito positivo nas comunidades periféricas. Durante o período mais intenso da pandemia, o colégio servia de ponto de distribuição de kits de merenda e cestas básicas. Quanto às equipes disciplinares, a ex-diretora reafirma que no início havia conflitos com a área pedagógica pela forma como os estudantes eram tratados.
“Uma vez um militar disse para um aluno fora da escola: ‘Olha, você vai para casa em cinco minutos. Se eu passar aqui de novo, eu vou lhe levar para a delegacia’. Ele não gostou e me ligou. Eu telefonei para o major responsável e falei para ele dizer ao pessoal da equipe que nem todo aluno era bandido ou filho de bandido” – revela.
Sobre a questão pedagógica, Florineide diz que nunca se sentiu tolhida quando atuava como professora e que trabalhava de uma forma lúdica. Inclusive usava a lousa interativa, [1]embora reconheça que nem todos os recursos eram aproveitados. E apresenta outros argumentos em defesa do modelo militarizado:
“Um sistema desse não é salutar para a comunidade em termos de afastar a violência e o tráfico de drogas? Os policiais não perguntavam nada sobre os alunos, ninguém tinha preocupação em descobrir quem era traficante. Nossa questão era que o aluno fosse protegido desse tipo de situação. Não vivenciei nenhuma questão de usarem a escola como bode expiatório para chegar ao pessoal do tráfico. Se tivesse acontecido, eu teria condenado este tipo de situação” – diz.
Por fim, a educadora ressalva que o modelo CPM não dá certo para todos os alunos.
A NOVA GESTÃO
O atual prefeito Elmo Nascimento justificou a mudança do local da escola Maria do Carmo com o argumento de que as instalações eram acanhadas e não permitiam atender o aumento da demanda de alunos. Ele decidiu, então, ocupar a Escola Rural Gilcina Carvalho, construída pela Ferbasa (Companhia de Ferro Ligas da Bahia). A unidade tinha sido desativada pela Fundação José Carvalho.
“Nós fizemos um diálogo democrático com os pais e com os professores para atender a procura. Ou continuávamos com pouco mais de 300 alunos, ou aumentávamos o espaço para atender os 505 matriculados este ano. A maioria votou a favor e, em contrapartida, disponibilizamos seis micro-ônibus para transportar os estudantes. A PM também concordou em aumentar a ronda nos bairros em torno da antiga escola. Foi uma decisão acertada para o crescimento do projeto” – diz.
As instalações do colégio hoje são melhores. Incluem salas de aulas climatizadas, quadra coberta, posto médico, auditório e campo de futebol. No entanto, as providências da PM não impediram, de acordo com as mães de alunos, que uma facção criminosa se instalasse nos bairros periféricos e a violência recrudescesse.
O major Miguel Ângelo de Souza Veloso Monteiro, comandante da 54ª CIPM, minimiza o impacto causado pela transferência do educandário. Segundo ele, a intensificação das rondas motorizadas evitou prejuízos à segurança.
A disponibilização dos ônibus escolares não agradou totalmente as mães, pois elas se queixam que os tutores disciplinares não acompanham os estudantes no trajeto.
Elmo acrescenta que o município tem 118 escolas e 13 mil alunos – a escola cívico-militar tem o equivalente a 4% do total do alunado – que também precisam de ensino de excelência. Entre os projetos do gestor municipal, está a instalação de outra unidade militarizada no distrito de Laje dos Negros. Esta comunidade quilombola tem cerca de 15 mil habitantes.
Assim como sua antecessora, ele não revela os custos de implantação, que prefere chamar de investimento. A respeito da violência, ele diz que tem crescido entre adolescentes e jovens cooptados pelo tráfico de drogas. Além disso, considera que a pandemia aflorou a desigualdade social.
“A melhor forma de combater a criminalidade e a desigualdade é com a educação. E a educação com disciplina é a combinação que dá certo” – diz, sem detalhar o que leva a esta conclusão.
Em reunião de alinhamento com a comunidade escolar, em março deste ano, o major Ângelo considerou a parceria com a secretaria municipal de educação um sucesso. Ao se referir ao aumento da procura por vagas, falou que talvez seja necessário mudar o critério de matrículas:
“Não sei se no futuro haverá seleção” – especula.
Com a experiência de quatro anos na função, um diretor disciplinar que pediu para não ser identificado, disse que desde o início do processo percebeu que ele seria seletivo.
“Eu vi que os meninos das comunidades mais pobres e violentas tinham demandas que a gente não ia atingir profundamente. A questão pedagógica e o aprofundamento da problemática social nunca serão atingidos, pois precisamos criar uma rede de parcerias”.
Segundo o mesmo oficial, sem a participação do Ministério Público, do Juizado da Infância e Adolescência, dos Centros de Referência de Assistência Social (Cras), dos Centros de Referência Especializado de Assistência Social (Creas), da Justiça e de diversos órgãos públicos não há como obter resultados plenos.
“Primeiro saem os que não são afeitos ao processo, depois os que não se adaptaram. Aí vão saindo os que chegam ao final do ciclo. Depois de um tempo, o perfil dos alunos mudou” – explica o policial, resumindo bem o processo de Campo Formoso.
O percentual de alunos dos bairros periféricos estaria em torno de 50%, de acordo com funcionários da escola.
SEM RECURSOS
A atual secretária de Educação, Iracy Andrade de Araújo, está preocupada em reparar as consequências da pandemia. Segundo ela, para reparar o prejuízo, a rede municipal precisa investir na alfabetização e em psicopedagogas, além de fazer uma avaliação de professores e alunos. A princípio, Iracy tinha interesse em incluir outras escolas no modelo CPM, mas diz não ter recursos agora.
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[1] Equipamento que permite ao usuário destacar, anotar ou escrever em qualquer documento exposto na tela de touch e fazer capturas instantâneas de imagem.
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Esta série de reportagens foi financiada pelo Edital de Jornalismo de Educação, uma iniciativa da Jeduca e do Itaú Social.
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LEIA A SÉRIE COMPLETA
PARTE I
A militarização das escolas na bahiaO avanço para o interior O exemplo goiano Diferentes escolas militares e militarizadas
PARTE II
A história do Colégio Maria do Carmo Mães aprovam modelo CPM, filhos nem tantoFundamental I e ensino médio na mira
PARTE III
Conceição do Jacuípe: boletim expõe alunos O regulamento e a cartilha Muita fé e só uma mulher entre 466 tutores Tutor disciplinar barra aluna negra
PARTE IV
Escola troca nome de vítima da ditadura Mais unidades da PM do que infraestrutura Entre a esperança e o bafo da milícia Inquérito 1.14.001.001281
PARTE V – FINAL
Miriam Fábia: “Impacto brutal na formação dos jovens”Major Fabiana: ‘Disciplina como ferramenta para a vida’O governador emudeceuDepoimentos de ex-alunos do CPM
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Jornalista, editor, professor e consultor, 61 anos. Suas reportagens ganharam prêmios de direitos humanos e de jornalismo investigativo.