Ativismo marca trajetória da pioneira em estudos sobre discriminação nos livros didáticos
Cleidiana Ramos
A professora Ana Célia da Silva concluiu o curso de magistério técnico no Instituto Central de Educação Isaías Alves (Iceia) e ingressou no sistema público, via concurso. Ela terminou a formação superior em pedagogia na Universidade Federal da Bahia (Ufba) com 24 anos, em 1968, mesmo ano em que assumiu o posto no Colégio Anísio Teixeira. Durante toda a trajetória profissional, a doutora em educação e professora aposentada da Universidade do Estado da Bahia (Uneb) sempre se incomodou com o racismo que testemunhava e que sofreu na escola.
No livro “Intelectuais insurgentes no campo da formação de professores(as)”, Ana Célia conta, ao ser entrevistada pela pesquisadora Ivanilda Cardoso, em 2017, que desde o primário escrevia redações e as pessoas não acreditavam que ela era a autora dos textos. Um dia houve um concurso de poesia e a professora Antônia se recusou a entregar o prêmio para ela:
“Nunca me esqueço. Eu fiz o verso e apresentei. Ela me disse: ‘Não foi você que escreveu’. E não me deu o prêmio. Eu chorei. E era uma professora negra. Ela internalizou essa ideia. ‘Você não é capaz, você copiou de alguém’” – conta.
Natural de Salvador, a educadora e ativista, hoje com 83 anos, nasceu e cresceu no Centro Histórico. O tempo em que residiu na Rua do Bispo deu motivos para que duvidasse da tal democracia racial brasileira, o discurso preponderante em sua infância.
No início da sua carreira como professora, em 1968, o Brasil estava em meio à ditadura civil-militar e a luta contra o racismo se encaixava nas interpretações de ameaça à Lei de Segurança Nacional. Um dia, em um momento de lazer, nas imediações dos cinemas na confluência da Ladeira de São Bento com a Praça Castro Alves, Ana Célia ouviu do professor Juscelino Barreto, referência no ensino da filosofia, que a Associação dos Professores Licenciados do Brasil – Seção Bahia (APLB-BA) estava desativada.
Ao lado de outros colegas, Ana Célia sentenciou: “Vamos reabri-la”. E foram mesmo. A primeira tarefa foi uma faxina na sede da Ladeira de São Bento que durou quase um mês porque as condições eram péssimas, com móveis quebrados e muita poeira.
O segundo desafio foi conseguir associados.
“Eu ia para a fila dos bancos e conversava com os professores dizendo da importância de se filiar” – recorda.
A atividade sindical era atraente para Ana Célia, mas uma das atividades de classe no Colégio Anísio Teixeira a desanimou. Para muita gente racismo não existia e um cartaz que ela havia produzido sobre o assunto para uma ação da associação ganhou frases de negação e repúdio.
O tema voltou a inquietar Ana Célia desde 1975, quando ela assistiu ao primeiro desfile do bloco afro Ilê Aiyê no Carnaval.
“Eu vi aquele monte de mulheres negras e homens negros vestidos de vermelho e preto, simbolizando guerreiros africanos. Eu fiquei fascinada, mas havia comentários de muita gente, inclusive pessoas negras, de que vermelho não combinava com negro. Já eu fiquei completamente hipnotizada” – relata a educadora.
REUNIÕES INSPIRADORAS
Foi mais ou menos nesse período que Ana começou a frequentar as reuniões do Grupo Nego. Pessoas que são referências na história dos movimentos negros baianos, como Gilberto Leal, da Coordenação Nacional das Entidades Negras (Conen), Lino Almeida e os bailarinos Tição e Kal, eram seus companheiros. Foi a Conen que organizou a marcha pioneira contra o racismo, que saiu do Campo Grande, no Centro de Salvador, no Dia Nacional da Consciência Negra (20/11), reunindo representações de movimentos sociais diversos.
As reuniões do Nego aconteciam em um local com apelido inusitado: Cemitério de Sucupira [1], oficialmente a Praça Municipal, onde hoje está situada a Prefeitura de Salvador. Os jovens do Nego, posteriormente, passaram a integrar uma ala do Movimento Negro Unificado (MNU), criado em 1978. No ativismo, Ana Célia teve a companhia do irmão Jônatas da Conceição, professor, radialista e poeta.
Em 1981, Ana Célia foi uma das fundadoras do Grupo de Educação Robson Silveira da Luz ao lado de Jônatas Conceição, Carlos Alberto Menezes e Gildália Luz. A denominação homenageou um jovem negro torturado e morto pela ditadura militar.
“Eu fui fazer mestrado, depois saí por conta do ativismo e levei vinte anos para voltar e concluir o curso em 1998. Minha pesquisa começou por uma provocação da professora Yeda Pessoa de Castro. Ela me mostrou uma cartilha sobre a história de uma menina – “Sonho de Talita” – e me perguntou o que eu estava percebendo. A princípio não percebi nada e depois de mais uma leitura eu disse: ‘Professora: jogam tudo de ruim na personagem que é negra’” – relata.
Horrorizada com o discurso, a educadora se dedicou a mostrar como os livros didáticos usados nas escolas brasileiras seguiam a lógica racista em ambientes educacionais. Os primeiros dados da pesquisa resultaram em um texto premiado em um concurso de monografias em que o poeta e ator Antônio Gody também foi contemplado. Na banca estavam representantes da elite das ciências sociais brasileiras, como o antropólogo Kabengele Munanga e o sociólogo Octávio Ianni. Dali saiu a primeira das obras de referência de Ana Célia, intitulada A discriminação do negro no livro didático, publicado em 1995.
A obra foi apoiada por um coletivo. O historiador João José Reis, autor de trabalhos como Rebelião Escrava no Brasil, outra obra de referência sobre a questão étnico-racial, fez a revisão. O antropólogo Júlio Braga foi em busca da publicação pela Edufba, editora da Universidade Federal da Bahia. O também antropólogo Jeferson Bacelar, que dirigiu o Centro de Estudos Afro-Orientais (Ceao), publicou artigo em um jornal de grande circulação, anunciando que estava chegando uma obra que abriria um debate fundamental.
A militância de combate ao racismo em ambiente escolar tinha rendido frutos, via o ativismo do grupo que Ana Célia integrou. Foi do Centro de Estudos Afro-Orientais (CEAO) e do Movimento Negro, que saiu a indicação para a introdução da disciplina Estudos Africanos em escolas estaduais de 1º e 2º graus. A implantação ocorreu na segunda gestão do professor Edivaldo Boaventura (1933-2018) como secretário de educação [2] .
Professor universitário, advogado e sociólogo de prestígio, Boaventura introduziu a matéria em pelo menos oito unidades da rede estadual. A iniciativa durou dois anos. Ela foi extinta no governo de Waldir Pires (PMDB).
Quando levantou o debate sobre o racismo nos livros didáticos, Ana Célia esteve em meio a um furacão. O Brasil ainda estava sob a ditadura civil-militar. Mas ninguém para Ana Célia. E isso está registrado em um conjunto de reportagens de jornais, fazendo análise sobre a importância do trabalho dos blocos afros na conscientização sobre o racismo, ou escrevendo para as seções de cartas dos leitores sobre o tema. A ativista também realizava palestras em locais de prestígio como a Câmara Municipal. Ela ainda encontrava tempo para aplicar seus conhecimentos na preparação dos cadernos relacionados aos desfiles do Ilê Ayê, em parceria com o irmão e a professora Lourdinha Siqueira.
Em agosto deste ano, Ana Célia lançou a autobiografia “Fragmentos de Mim”, onde faz reflexões sobre os caminhos seguidos pelos movimentos negros baianos. Ela segue participando de seminários e eventos de lançamentos de livros de colegas e ex-alunos. A educadora não esconde o prazer de fazer pontes entre diferentes gerações porque sabe que a luta contra o racismo tem como importante estratégia a construção de alianças.
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Notas de pé de página
[1] Em 1912, após bombardeio feito pela elite política para tentar impedir a posse de José Joaquim Seabra (1855-1942) no governo, os prédios da Imprensa Oficial e da Biblioteca Pública ficaram seriamente danificados. Nos anos 1970, o governador Antônio Carlos Magalhães, eleito de forma indireta durante a ditadura, derrubou os escombros dos prédios, passou cimento no local e anunciou a construção de uma praça. A demora para realizar a obra fez o povo compará-la ao cemitério que nunca era inaugurado, prometido pelo prefeito Odorico Paraguaçu, na novela O Bem Amado, da TV Globo. O ator Paulo Gracindo (1911-1995), de forma magistral, deu vida ao personagem.
[2] Edivaldo Machado Boaventura foi secretário de educação e cultura da Bahia pela primeira vez entre 1970 e 1971, no governo de Luiz Viana Filho (Arena). A segunda passagem (1983-1987) ocorreu na gestão de João Durval Carneiro (PDS).
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O ITAN DO DIA
Glossário:
Akara ou Akará – Bolinho de feijão fradinho, cebola, alho e sal, frito no azeite de dendê. No Brasil se chama acarajé.
Abará – Leva os mesmos ingredientes que o akará, mais dendê e camarão seco. A diferença é que o bolinho é cozido no vapor.
Epeté – Comida preparada com inhame, azeite de dendê, cebola e camarão seco. É comida votiva de Oxum e Iemanjá.
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Legenda da foto principal: Ana Célia é uma das principais referências na luta contra o racismo. Foto: Cleidiana Ramos
Matéria atualizada no dia 24/11/2023, às 07h35
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A pauta desta série de reportagens foi selecionada pelo 5º Edital de Jornalismo de Educação, uma iniciativa da Jeduca e Fundação Itaú.
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Leia a série completa
PARTE I
A lei fracassou? As estratégias dos movimentos negros O protagonismo dos terreiros e dos blocos afro Yabás em movimento As yabás I - Mãe Hildelice dos Santos
PARTE II
A escola do portão verde As yabás II – Ana Célia da Silva A hora da verdade O longo e desgastante trâmite no Congresso
PARTE III
Assuntos sobre negros importam A resistência de Lázaro Formação continuada na Uneb Escola reflete filosofia africana As yabás III – Vanda Machado O projeto pedagógico Yrê Aió
PARTE IV – FINAL
'Nenhum secretário teve a temática racial como prioridade' O silêncio absurdo de Thiago Remando contra a maré Pesquisa mostra a realidade brasileira Olívia e os novos desafios As yabás IV - Jacilene Nascimento
- Author Details
Cleidiana Ramos é jornalista, mestra em estudos étnicos e africanos e doutora em antropologia. Professora visitante na Universidade do Estado da Bahia (Uneb), campus Conceição do Coité, produz a coluna semanal Memória, no jornal A Tarde. É especialista em religiões afro-brasileiras e católica. Outro tema que domina são as festas populares baianas.
Uma resposta
Parabéns pela bela apresentação da professora, orientadora educacional, mestra e doutora em educacao Ana Celia da Silva! Relato bem construído com fatos importantes da trajetória de vida e que justificam a sua entrega total a um objetivo nobre (Lutar contra o preconceito, a discriminação racial e em favor da justiça e direitos iguais para todos). A força, determinação, coragem e competência da professora Ana Célia é exemplo, espelho e referência para as gerações que se seguem….