Olívia Santana, secretária que implantou a 10.639 em Salvador, defende que o atual governo atualize e amplie a legislação para tirar o atraso causado pela direita e ultradireita
Cleidiana Ramos e Paulo Oliveira
Maria Olívia Santana, pedagoga, militante do movimento de mulheres negras e política filiada ao PcdoB, era a secretária de Educação de Salvador, quando a lei 10.639 finalmente começou a ser implantada. Ela assumiu o cargo na gestão do então prefeito João Henrique Carneiro (PDT), a quem seu partido apoiou no segundo turno.
Em treze meses à frente da secretaria [1], ela implantou o sistema informatizado de matrícula e a lei que tornou obrigatório o ensino de história da África e cultura afro-brasileira.
Atualmente ocupando uma cadeira na Assembleia Legislativa da Bahia (Alba), Olívia se recorda do processo de implementação da nova legislação. Foi dela a ideia de criar a pasta de professores e professoras com textos de educadores, historiadores e um integrante do Instituto Steve Biko, pioneiro na oferta de pré-vestibular gratuito para estudantes negros. Os temas, dentre outros, tratavam de relações de gênero à contribuição dos negros para a ciência e para produções científicas.
Olívia lembra que nessa época já encontrou resistência de “religiosos fundamentalistas”, que viam com estranheza a contribuição da nova legislação para a formação de estudantes e docentes:
“Lembro de um vereador que conseguiu aprovar uma lei, determinando que eu tinha que colocar uma Bíblia em todas escolas da rede municipal. Quando chegou a determinação na secretaria, eu me recusei a cumprir. Argumentei que, se colocasse, teria que botar também o Alcorão, o livro dos espíritos, etc. Então, o prefeito à época entendeu que eu não cumpriria a determinação”
A ex-secretária avalia que a sanção da 10.639 foi uma decisão política de ruptura com a história hegemônica branca e colonial e visa incorporar os legados civilizatórios dos povos negros africanos no Brasil. Portanto, as mudanças de cenário a partir da eleição de políticos de direita e ultradireita provocam retrocessos e tentativas de apagamento de nossa história.
“Foi o que aconteceu nos governos Michel Temer e Jair Bolsonaro, um período de muitas perdas. Professores sofreram uma caçada ideológica e represálias. Todo esse atraso tinha a ver com uma perspectiva ideológica que confrontou, colidiu, com os avanços que a gente estava obtendo”.
Olívia Santana ressalta que, a partir da recente retomada democrática no país, o atual governo de centro-esquerda precisa avançar de forma consistente. Isto, segundo ela, inclui a atualização e ampliação da lei.
“A 10.639 é de 2003. É uma lei curta que precisa ser melhor preenchida para enfrentar os desafios de hoje e de amanhã”.
Sobre o que seria necessário para as conquistas avançarem, a deputada relaciona uma série de providências:
- Investimento em qualificação e formação de professores e professoras.
- Inclusão de conteúdos como a influência africana nas ciências e na língua portuguesa falada no Brasil.
- Divulgar as obras de grandes pensadores e escritores africanos.
- Reestruturar os cursos de licenciatura nas universidades para que os profissionais estejam aptos a trabalhar com a legislação assim que se formem.
“Somente assim teremos condições de dar saltos educacionais maiores” – finaliza.
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Nota de pé de página
[1] Olívia foi secretária municipal de Educação entre 3 de janeiro de 2005 e 3 de fevereiro de 2006.
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Legenda da foto principal: Olívia acredita que o atual presidente precisa tomar providências para a lei 10.639 avançar. Foto: Alba/Divulgação
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A pauta desta série de reportagens foi selecionada pelo 5º Edital de Jornalismo de Educação, uma iniciativa da Jeduca e Fundação Itaú.
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Leia a série completa
PARTE I
A lei fracassou? As estratégias dos movimentos negros O protagonismo dos terreiros e dos blocos afro Yabás em movimento As yabás I - Mãe Hildelice dos Santos
PARTE II
A escola do portão verde As yabás II – Ana Célia da Silva A hora da verdade O longo e desgastante trâmite no Congresso
PARTE III
Assuntos sobre negros importam A resistência de Lázaro Formação continuada na Uneb Escola reflete filosofia africana As yabás III – Vanda Machado O projeto pedagógico Yrê Aió
PARTE IV – FINAL
'Nenhum secretário teve a temática racial como prioridade' O silêncio absurdo de Thiago Remando contra a maré Pesquisa mostra a realidade brasileira Olívia e os novos desafios As yabás IV - Jacilene Nascimento
- Author Details
Cleidiana Ramos é jornalista, mestra em estudos étnicos e africanos e doutora em antropologia. Professora visitante na Universidade do Estado da Bahia (Uneb), campus Conceição do Coité, produz a coluna semanal Memória, no jornal A Tarde. É especialista em religiões afro-brasileiras e católica. Outro tema que domina são as festas populares baianas.