As yabás IV – Jacilene Nascimento

Revelar as belezas possíveis da educação inclusiva tem sido a missão da professora

Cleidiana Ramos

Quando decidiu que se tornaria professora, uma certeza Jacilene Nascimento, 58 anos, possuía. Ela iria construir uma escola diferente daquela que frequentou a muito custo. Filha de uma trabalhadora doméstica, com mais oito irmãos, ela tinha ainda muito nítidas as lembranças dos  apelidos que os colegas de escola lhe deram.

“Minha mãe trabalhava o dia inteiro. Meus irmãos mais velhos é que penteavam meu cabelo. Eles faziam duas tranças que ficavam meio desajeitadas no alto da cabeça. Meu apelido era Vaca Mococa”, conta.

Havia mais problemas. Ela e as outras três irmãs tinham que dividir a farda. As duas blusas que eram usadas pela manhã viravam, no turno da tarde, o mesmo uniforme.

“Imagine que as duas passavam a manhã suando e a gente vestia a mesma blusa na parte da tarde. Então chegávamos na escola com aquele cabelo penteado de qualquer jeito e ainda por cima fedendo. Era um convite para os xingamentos”, relata.

Dessa forma, a escola era uma tortura e, para a versão menina de Jacilene, era muito mais divertido explorar as dunas em torno da Lagoa do Abaeté. Tanto que ela só foi aprender a ler aos 12 anos. E isso porque a lógica de um dos irmãos a convenceu. Ele argumentou que a pré-adolescente deveria se esforçar mais para sair rapidamente do lugar que  ela não suportava.

Só que a garota foi seduzida pelo conhecimento que passou a adquirir. Tanto que aos 17 anos estava em uma sala de aula se preparando para ensinar outras crianças como ela. E foi ali que se deu o encanto. Uma estudante do curso pedagogia foi fazer o estágio docente na turma de Jacilene.

“Era uma mulher negra, como eu, falando de racismo de uma forma que eu sentia, mas não conseguia expressar” – recorda.

A estagiária tornou-se a professora Ana Célia da Silva, uma referência em qualquer debate sobre racismo no campo da educação. Ana foi uma das pioneiras no Brasil na denúncia sobre o racismo presente nos livros didáticos. Suas obras são obrigatórias em qualquer curso qualificado de práticas educacionais.

MODELO

Ali começou para a futura pedagoga uma trajetória que se aproximaria das referências da professora que admirava. Ela começou sua carreira profissional no sistema particular de ensino. A menina que demorou a dominar os mistérios da alfabetização se tornou uma especialista nesse campo. Atuou em escolas de prestígio na capital baiana: Colégio Nossa Senhora da Assunção, Antônio Vieira e Sacramentinas.

Mas inquieta, como o vento, embora só muito mais tarde descobrisse seu pertencimento ao candomblé e condição de filha de Iansã, Jacilene Nascimento foi para a universidade. Escolheu pedagogia exatamente pelo talento que descobriu em manejar as metodologias de alfabetização. Mesmo na confortável condição de professora da rede particular de ensino, foi para o sistema público em 1993 por meio de concurso. Apaixonou-se pela realidade de encontrar tantas meninas e meninos com histórias parecidas com a dela.

Antes, a educadora presenciou um caso interessante em um curso para crianças liderado por Ana Célia e outras ativistas como Arany Santana, no Centro Histórico. Jaci, como também é conhecida, se sensibilizou com uma menina que, como ela, mostrava um sério desconforto com o cabelo. No caso da aluna, o corte era bem curtinho. Filha de uma profissional do sexo, a menina dormia durante as aulas.

“Observando, eu consegui entender a dinâmica. Ela não dormia porque a mãe tinha que atender os clientes e, de certa forma, a protegia ao deixá-la fora de casa. Eu comecei a me aproximar e a trançar o cabelo dela. Geralmente ela dormia nessas horas”, conta.

Após a primeira experiência no sistema público, Jacilene não saiu mais. Sentiu que tinha uma tarefa: construir uma escola diferente daquela que frequentou. Transferida para a escola Rocha Bueno, no local conhecido como Parque São Cristóvão, na região do aeroporto de Salvador, ela viu a chance de realizar o seu propósito.

Na Rocha Bueno, a pedagoga assumiu as funções de professora e de coordenadora pedagógica, pois ainda não havia concurso separado para essas funções. Com cursos de especialização na Universidade do Estado da Bahia (Uneb) e outros relacionados à difusão de cultura afro-brasileira, a profissional contou com a solidariedade de educadoras e ativistas para fazer a formação de professoras e professores na instituição onde atuava.

“Ana Célia, Lindinalva Barbosa, Silene Arcanja e tantas outras pessoas iam lá ajudar. Ninguém recebia um centavo. Era a solidariedade preta”, acrescenta.

A estrutura física da Rocha Bueno tinha vários problemas. Quando chovia, o que em Salvador ocorre de uma forma intensa a partir de março, a escola alagava. Logo, a professora estava participando dos protestos da comunidade.

“Eu cheguei a ir em manifestação que teve queima de pneu. Fui chamada na Secretaria de Educação e me transferiram para uma gerência”, diz.

Se alguém esperava domar a professora, foi a menina que desafiava as dunas que apareceu. Menos de um ano e Jacilene estava de volta ao Parque São Cristóvão. Com sua rede de articulações políticas, que incluía aliados da procuradoria do município, ela foi orientada sobre como deveriam ocupar um terreno para a construção de uma nova escola.

Manifestação dos estudantes da escola Parque São Cristóvão. Arquivo (20-11-2017)

Foi assim que a Escola Parque São Cristóvão, hoje com 18 anos, ganhou materialidade. A construção começou, mas volta e meia emperrava. Jacilene Nascimento lembra de um período em que o terreno, muito próximo a um charco, fervilhava de cobras. Ela nem pensou direito. Colocou os répteis capturados em garrafas de refrigerante pet e levou tudo para a Secretaria Municipal de Educação. Lá, disse que , se a comunidade escolar podia conviver com as cobras, o pessoal da secretaria também seria capaz de lidar com elas. Foi, como se diz na Bahia, um arerê.

O problema da infraestrutura foi resolvido. E no campo pedagógico a escola Parque São Cristóvão brilhou. Quando Salvador operacionalizou a lei 10.639, a partir de 2005, a Escola Parque São Cristóvão era referência. A equipe, coordenada pela agora diretora Jacilene, privilegiava a participação comunitária. Assim, conseguiu conquistar uma nota elevada na avaliação do Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb). O excelente desempenho resultou em convites para a gestora ministrar palestras em cidades dos Estados Unidos e da Argentina.

RETORNO E MUITAS BATALHAS

Com as dinâmicas de troca de governo, a gestora passou uma temporada em uma escola do Bairro da Paz, a 7,5 quilômetros de distância. Uma reviravolta a levou de volta para a diretoria da Parque São Cristóvão.Ao tomar posse, ela percebeu que a comunidade andava desanimada. Foi aí que teve a ideia de matricular a própria filha na escola para demonstrar a confiança na retomada do projeto pedagógico participativo. Professoras e funcionárias seguiram o exemplo. A comunidade entendeu o recado e voltou a colaborar ativamente.

Agora à espera da aposentadoria, Jacilene Nascimento enumera as muitas batalhas que travou. Uma delas foi  para conter a rebelião de parte do corpo docente que a denunciou por assédio moral.

“Isso ocorreu porque eu pedi a remoção de 11 professores. No meu retorno, identifiquei práticas como uso de rede social no horário da aula ou faltas seguidas para trabalharem em outros lugares. Só que tudo que eu denuncio é documentado. Respondi a todas as instâncias e provei que eu estava certa, do lado de quem estava comprometido com a luta da comunidade para manter a escola” – acrescenta.

Jaci enfrentou ainda a falsa denúncia de que transformava o ambiente escolar em ensino de candomblé.  Se teve lideranças  evangélicas que a atacaram, outras a abraçaram.

“Muitas vezes  pastores me cediam missionárias para reforçar as aulas. Na fase de conflito com os professores, um padre enviou catequistas para substituí-los. Outro reforço foi dado por estudantes Universidade Católica de Salvador (Ucsal). Um trabalho que não é personalista atrai solidariedade” – avalia.

Hoje, a professora considera que cumpriu a promessa feita à menina que brincava nas dunas. Afinal, agora, as duas se entendem muito bem.

“Eu compreendo que o melhor diálogo é a educação que ensina autoestima” – diz Jacilene que, como um dos arquétipos da orixá que é dona da sua cabeça, não tolera injustiças e chega com a força do vento para revelar o que está escondido.

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O itan do dia

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Legenda da foto principal: Jacilene Nascimento entende a valorização de autoestima das crianças negras como fundamental no processo pedagógico.  Foto: Claudio Rodolfo.

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A pauta desta série de reportagens foi selecionada pelo 5º Edital de Jornalismo de Educação, uma iniciativa da Jeduca e Fundação Itaú.

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Leia a série completa

PARTE I

A lei fracassou?  As estratégias dos movimentos negros O protagonismo dos terreiros e dos blocos afro Yabás em movimento As yabás I - Mãe Hildelice dos Santos

PARTE II

A escola do portão verde As yabás II – Ana Célia da Silva A hora da verdade O longo e desgastante trâmite no Congresso

PARTE III

Assuntos sobre negros importam A resistência de Lázaro Formação continuada na Uneb Escola reflete filosofia africana As yabás III – Vanda Machado O projeto pedagógico Yrê Aió

PARTE IV – FINAL

'Nenhum secretário teve a temática racial como prioridade' O silêncio absurdo de Thiago Remando contra a maré Pesquisa mostra a realidade brasileira Olívia e os novos desafios As yabás IV - Jacilene Nascimento

Cleidiana Ramos Contributor

Cleidiana Ramos é jornalista, mestra em estudos étnicos e africanos e doutora em antropologia. Professora visitante na Universidade do Estado da Bahia (Uneb), campus Conceição do Coité, produz a coluna semanal Memória, no jornal A Tarde. É especialista em religiões afro-brasileiras e católica. Outro tema que domina são as festas populares baianas.

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