Assuntos sobre negros importam

Conceição Rodrigues e outros oito professoras e professores de inglês desenvolveram
métodos e atividades para debater questões étnico-raciais com os estudantes

Paulo Oliveira

O sistema de escrita pictográfica e de ideias do povo Ashanti, localizado principalmente em Gana, Burkina Faso e Togo, é chamado de Adrinka. O número de símbolos varia de 80 a 122, dependendo da fonte de informação. Através dele são transmitidos a sabedoria ancestral, aspectos da vida ou do meio ambiente, geralmente associados a provérbios. O pictograma Aya (foto) é  o desenho de uma samambaia estilizada. Por crescer em lugares difíceis, representa independência, perseverança e desenvoltura, características da professora de inglês Conceição Rita Pires Silva Rodrigues.

Chegamos em Conceição através da gerente de Inclusão e Transversalidade da Secretaria Municipal de Educação (SMED), Daniela da Hora Correia. A gestora citou o trabalho que a profissional desenvolve na escola Joir Brasileiro, no bairro de Brotas, em Salvador. E informou que ele foi indicado para a mostra criativa, relacionada à lei 10.639/2003.

Os projetos selecionados, incluindo a peça teatral “Lelê’s hair”, serão apresentados na primeira semana de dezembro, no espaço cultural Subúrbio 360 graus, em Coutos. Essa é apenas uma das sete atividades que a educadora desenvolveu para atender os objetivos da legislação. Todos constam no livro “Black matters matter” (“Assuntos sobre negros importam”), voltado para professores e professoras de língua inglesa, lançado no ano passado.

A lei que instituiu a obrigatoriedade do ensino de história e cultura afro-brasileira nos cursos fundamental e médio, nas redes pública e particular, foi sancionada pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva, oito dias depois de ele assumir o primeiro mandato presidencial (2003).

O segundo parágrafo do artigo 26-A estipula que “os conteúdos (…) serão ministrados no âmbito de todo o currículo escolar, em especial nas áreas de educação artística e de literatura e história brasileiras”. Mesmo com caráter multidisciplinar preconizado na legislação e nas diretrizes publicadas posteriormente, alguns professores alegam que suas disciplinas não estão citadas e ignoram a determinação.

Este é um dos motivos para a gestora se entusiasmar com a participação da professora de inglês. Mas é preciso fazer uma correção na informação de Daniela: Conceição já está aposentada. O trabalho que ela faz no município é voluntário.

Nascida no bairro da Liberdade, Conceição Rodrigues cursou parte do ensino fundamental I no Educandário Santana, uma escolinha particular, e o concluiu na Escola Municipal Pirajá da Silva. No fundamental II, foi transferida do Colégio Estadual Carneiro Ribeiro para o Tereza Conceição Menezes, no Curuzu, por conta da precária estrutura do antigo casarão, na ladeira da Soledade.

A jovem optou por continuar os estudos no Instituto Central de Educação Isaías Alves (ICEIA). O magistério era um curso diferenciado. Tinha quatro anos de duração, em vez de três como no ensino médio. No quarto ano, a futura professora estudava à noite no ICEIA e, pela manhã, fazia a faculdade de língua estrangeira (Inglês), no Instituto de Letras da Universidade Federal da Bahia (UFBA).

Foram sete anos até obter o diploma do curso universitário (1975-1989):

Ela lembra que foi obrigada a pegar menos disciplinas e a permanecer mais tempo na universidade porque tinha sido aprovada no concurso de professora da SMED, além de dar aulas em dois cursos particulares: a Associação Cultural Brasil Estados Unidos (ACBEU) e Universal English Course (UEC).

Três anos depois de formada, a professora foi convidada pela direção da ACBEU a se aperfeiçoar na School of International Training, em Vermont (Estados Unidos). Como estava grávida, recusou o convite. No ano seguinte, a proposta foi renovada.

Sem ter experiência no exterior, Conceição aceitou. Ela foi orientada na secretaria municipal a pedir licença especial, mas até a data da viagem a autorização não foi concedida. Conceição viajou mesmo assim. Na volta, soube que estava respondendo a um inquérito administrativo.

O procurador do município que acompanhava o caso disse que a situação era absurda, pois a licença que deveria ter sido solicitada era a de estudo e não a especial. Durante o processo, a autorização para viajar foi concedida com muito tempo de atraso.

“O curso que fiz foi enriquecedor, não só para escolas particulares, mas para a própria prefeitura. Uma das grandes deficiências da Secretaria Municipal de Educação é a falta de formação. Se alguém chegar lá hoje e perguntar qual departamento cuida de língua inglesa, creio que ninguém aparecerá. E se já existem dificuldade no trato do ensino de inglês, imagine com a disciplina tendo um viés voltado para questões raciais. Por esse motivo, decidi sair da rede pública” – conta.

Foram 11 anos de afastamento.

CABELO ALISADO E PERUCA

As escolas particulares de idiomas investiram na ex-professora do município. No ACBEU, havia os study days (dias de estudo) de aprimoramento continuado. Eles ocorriam várias vezes durante o semestre. Pelo UEC, ela participou de um encontro de professores na Escuela de Idiomas, em Barcelona.

Um dia, a mãe de Conceição lhe aconselhou a retornar para o emprego público, alegando que as empresas privadas dispensavam trabalhadores por qualquer motivo. Não deu outra: o UEC fechou as três unidades em Salvador e fez demissões em massa.

Um novo concurso levou a professora de volta à rede pública. Dessa vez, ela foi lotada na escola Joir Brasileiro [1], onde desenvolveu, a princípio instintivamente, técnicas para abordar questões étnicos raciais.

“Uma coisa que me instigava. Eu estava em uma sala, em uma comunidade onde a maioria das pessoas eram negras. Então por que não tratar dessas questões que diziam respeito a elas?”

Segundo Conceição, os professores de inglês costumam ensinar vocabulário e gramática, sem alinhar os conteúdos com a realidade dos alunos. Era preciso fazer com que eles vissem um propósito no aprendizado.

Lucicleide, protagonista da peça Lelê’s Hair”. Foto: Arquivo da professora

Ela também se incomodava com o fato de haver uma concentração de projetos em 20 de novembro (Dia da Consciência Negra) e não durante todo o ano letivo. Visando aplicar a legislação corretamente, a professora decidiu adaptar a obra “O cabelo de Lelê”, de Valéria Belém, e transformá-la em uma peça teatral em inglês.

No livro, Lelê tem problemas de identidade e de autoestima, algo muito recorrente nos alunos, principalmente nas meninas. A não aceitação de suas características físicas está relacionada com o que a educadora chama de “massacre’. Isto é, a permanente classificação da imagem do negro como algo não aceito e a exaltação dos padrões brancos e europeus como exemplares e belos.

Para concretizar seu projeto, Conceição pediu ajuda a Wagner Franco, um colega do curso de inglês, formado em direção teatral. Ele aceitou o desafio.

“A história tem só uma personagem, que não está satisfeita com os seus cabelos. Para a peça, Wagner criou personagens, incluindo mãe, pai, irmã, irmão da menina. Além de ensinar como deveria ser feita a seleção dos atores. Ensaiamos, colocamos a peça para rodar e nos apresentamos em diferentes escolas, cursos e universidades” – acrescenta a professora.

Desde 2009, há exatos 14 anos, o elenco é renovado toda vez que os “atores” passam para o ensino médio. A peça é remontada em diferentes formatos, incluindo monólogo e jogral. Este ano, a ideia é apresentar a história como se fosse um vídeo do Tik Tok, no qual cinco meninas contracenam.

“A princípio os alunos resistem por timidez ou porque a peça em inglês requer mais estudo” – avalia a responsável pela direção.

Recentemente a primeira protagonista da peça, Lucicleide Oliveira, deu um depoimento para Conceição sobre a importância de se apresentar nos palcos.

“Foi a partir da peça, das discussões que a gente teve em sala de aula, que comecei a me identificar como uma pessoa negra. Ao sair da escola, fui para o ensino médio, me formei em técnica em enfermagem e em cuidadora de idosos. Hoje estou cursando farmácia”

Conceição lembra que, quando a adolescente foi escolhida, o cabelo dela estava alisado. Foi preciso arrumar uma peruca cacheada para ela se incorporar a personagem. Depois disso, Lucicleide voltou a usar seus cabelos naturais.

A iniciativa de ensinar inglês através de peça teatral foi incluída no livro “Black matters matter” O trabalho, que cumpre a lei 10.639, é fruto da tese de doutorado da professora Joelma Santos e da experiência de oito professores que fizeram o curso de formação no Núcleo Permanente de Extensão em Letras (Nupel) da UFBA, entre agosto e dezembro de 2019. Conceição contribuiu com sete iniciativas.

Todo início de ano letivo a cena se repete, a coordenadora da escola Joir Brasileiro incentiva os professores a apresentarem projetos interdisciplinares sobre história e cultura afro-brasileiras. E pedia que fossem tratados temas como a contribuição dos negros na formação do Brasil.

Uma das primeiras medidas para motivar os alunos foi a criação de um calendário com profissionais negros de diversas áreas. Cada mês era ilustrado com uma imagem de artistas, atletas e cientistas, e um pequeno currículo de cada um. A preparação era feita no segundo semestre. Quando o trabalho ficava pronto, a professora mandava imprimir em tamanho grande e o encadernava com recursos próprios. Durante o ano seguinte, a super folhinha podia ser consultada na secretaria ou na sala dos professores.

Outra experiência marcante foi o “fashion show” (desfile de moda):

“Durante os preparativos, alunos e alunas aprendiam o vocabulário sobre roupas e a descrever o que estavam usando, em inglês. Ficou acertado que eles usariam roupas étnicas, o que os levou a pesquisar padrões afros. Os dois escolhidos para serem mestres de cerimônia apresentavam os modelos pelo nome, informavam a idade, altura e descreviam o que cada um vestia. Era um estímulo para o uso da língua inglesa. Além disso, soube que o Boticário fazia um trabalho social, oficinas sobre estética em escolas. Eu procurei a empresa e ela topou maquiar a galera antes do desfile” – relembra.

Já poemas curtos com adjetivos para cabelos de todos os tipos deram origem a um sarau, no qual Wagner Franco voltou a ter importante participação. Ele sugeriu que as crianças fizessem algo impactante. Podia ser uma entrada triunfal, subir em uma cadeira ou mesa antes de declamar. A insistência com o tema cabelo tinha razão de ser. Em uma pré-atividade, vários alunos se recusaram a se olhar no espelho porque se achavam feios.

SONHOS INTERROMPIDOS

A criatividade de Conceição não tinha limites. Depois de utilizar poesia, ela orientou os alunos a produzirem um livreto, retratando as pessoas da escola – colegas, funcionários e professores. O objetivo permanecia melhorar a autoestima do grupo. Ela própria foi homenageada por Péricles Queiroz, do 7º ano, que a desenhou e escreveu o seguinte:

 

Desenho feito por Pericles. Foto: Arquivo da professora

“Conceição is a Brazilian girl. She has curly black hair. Conceição wears glasses. She is short and black. Her nose is big and her mouth is small. She is beautiful. Conceição is a good teacher.

By Pericles Queiroz [2]

Infelizmente, Péricles foi assassinado pela polícia em 2020, dois anos depois de concluir o Ensino Fundamental II. Conceição ficou devastada.

A educadora definiu o jovem como um menino extremamente inteligente e sonhador. Ele sempre lhe dizia que queria ser igual ao filho dela e seguir em frente com os estudos. Conceição disse ainda que o jovem não tinha perdido o vínculo com a escola. Ele era capoeirista e sempre aparecia nas atividades que celebravam a cultura negra. Além disso, as irmãs dele ainda estudavam na Joir Brasileiro.

“O que eu percebo, ao longo desses anos, é que falta, dentro da estrutura escolar, algo maior para abarcar os problemas das comunidades em situação de vulnerabilidade. Não basta só você ter um professor com intenção bacana para ensinar os meninos a pensar diferente. É preciso ter uma relação mais estreita, conhecer mais as famílias. É preciso ter profissionais de outras áreas para apoiar esses indivíduos. Pessoas mais preparadas para lidar com a questão da violência. Mas nada disso acontece. E o nosso trabalho acaba se esvaindo” – lamenta.

A ex-coordenadora do Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência (PIBID) da Universidade do Estado da Bahia (Uneb) também fez uma análise sobre os 20 anos da lei 10.639.

“O livro que escrevemos, o “Black Matters Matter”, causa um impacto nas pessoas porque parece algo novo, como se a legislação só existisse no papel. As escolas não trabalham a lei 10.639 como está previsto. Todo mundo corre para ter alguma coisa no dia 20 de novembro para contemplar a secretaria de educação. Há ainda outros buracos. A formação de professores é um exemplo. No caso de língua inglesa, a lei é tratada en passant (superficialmente)”, relata.

Conceição Rodrigues considera que, embora haja deficiências, a aplicação da legislação tem efeitos positivos nos jovens. A começar por Lucicleide, a protagonista da peça “Lelê’s hair, que começou a se aceitar a partir da experiência na escola. Para a professora. muitos alunos fortalecem a autoestima e vão banindo estereótipos negativos referentes aos negros.

Apesar de alguns avanços, ela admitiu que não conseguiu colocar em prática uma das sugestões incluídas no capítulo “African diaspora and cultures” (Diáspora e culturas africanas), que trata, dentre outros temas, de religião. Questionada sobre o motivo da não implantação, Conceição disse que “a direção da escola é adventista e muitos alunos frequentam uma grande igreja neopentecostal, próxima ao Shopping da Bahia (ex-Shopping Iguatemi)”

A atividade é baseada em outro livro de literatura infantil, chamado “Minhas Contas”, de Luiz Antônio (texto) e Daniel Kondo (ilustrações).

Nele, Pedro e Nei são amigos. Um dia, a mãe de Pedro o proíbe de brincar com o parceiro por causa do fio de contas que o garoto usa. Nei fica abalado e conversa com sua família sobre o candomblé, “uma religião linda que prega o bem e o amor à natureza”. Ele fica orgulhoso com o que ouve.

A história sofre uma reviravolta. A mãe de Pedro fica doente e se cura graças aos conhecimentos ancestrais africanos e aos orixás. Agradecida, ela leva um bolo para a casa de Nei e permite que os dois meninos mantenham a amizade.

Mais uma vez Wagner Franco adaptou o livro para o teatro e entregou o roteiro em inglês para Conceição.

“Eu recebi o material e disse: “Ai, meu Deus, quem é que vai querer falar sobre orixás? Os meninos com todos aqueles preconceitos? Foi a única vez que não coloquei um projeto para rodar. Espero que um professor algum dia coloque e nos diga qual foi o resultado” – torce.

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Notas de pé de página

[1] Joir da Silva Martins Brasileiro foi advogado, político (deputado estadual, deputado federal e suplente de senador), professor e ex-secretário estadual de educação (1989-1991). A escola oferece ensino fundamental I e II, além de regularização de fluxo.

[2] Tradução: Conceição é uma garota brasileira. Ela tem cabelo preto cacheado. Conceição usa óculos. Ela é baixa e preta. Seu nariz é grande e sua boca é pequena. Ela é bonita. Conceição é uma boa professora.Por Péricles Queiroz

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SERVIÇO

Os dois volumes (foto) de “Black matters matter” (“Assuntos sobre negros importam”, em português) são voltados para professores de inglês que desejam implantar técnicas e atividades relacionadas com a lei 10.639/2003, que tornou obrigatório o curso de história da África e cultura afro-brasileira nas escolas de todo o país.

Organizados pela doutora em letras e linguística Joelma Santos, a obra tem a participação de oito professoras e professoras baianos, que utilizam metodologias inovadoras para tratar de questões étnico-raciais e culturais.

Os tomos possuem280 páginas e estão divididos em cinco temas: African Diaspora and Cultures (Diáspora e culturas africanas), Racism e anti-racism (Racismo e anti-racismo), Black body and symbols (Corpo e símbolos negros), Black personalities (Personalidades negras) e Black visibility in mass media (Visibilidade negra na grande mídia).

Todos autores e autoras (Ana Carla Nascimento, Ana Rita Santana, Bruno Brito, Conceição Rodrigues, Jefferson Ferreira, Joelma Santos, Ivanete Sampaio, Marieli Pereira e Tarsila Passos) participaram do curso de formação do Núcleo Permanente de Extensão em Letras (Nupel) da Universidade Federal da Bahia (UFBA).

A publicação está à venda nos sites da Edufba e da Amazon desde 2022, por R$ 130 (cento e trinta reais).

Para saber mais detalhes, assista ao vídeo abaixo:

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Legenda da foto principal: Conceição Rodrigues atua como professora voluntária na escola Joir Brasileiro. Reprodução

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A pauta desta série de reportagens foi selecionada pelo 5º Edital de Jornalismo de Educação, uma iniciativa da Jeduca e Fundação Itaú.

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Leia a série completa

PARTE I

A lei fracassou?  As estratégias dos movimentos negros O protagonismo dos terreiros e dos blocos afro Yabás em movimento As yabás I - Mãe Hildelice dos Santos

PARTE II

A escola do portão verde As yabás II – Ana Célia da Silva A hora da verdade O longo e desgastante trâmite no Congresso

PARTE III

Assuntos sobre negros importam A resistência de Lázaro Formação continuada na Uneb Escola reflete filosofia africana As yabás III – Vanda Machado O projeto pedagógico Yrê Aió

PARTE IV – FINAL

'Nenhum secretário teve a temática racial como prioridade' O silêncio absurdo de Thiago Remando contra a maré Pesquisa mostra a realidade brasileira Olívia e os novos desafios As yabás IV - Jacilene Nascimento

Jornalista, editor, professor e consultor, 61 anos. Suas reportagens ganharam prêmios de direitos humanos e de jornalismo investigativo.

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